quinta-feira, 27 de março de 2014

SESSÃO 11: 15 DE ABRIL DE 2014

OS SAPATOS VERMELHOS (1948)

Quando Michael Powell e Emeric Pressburge criaram  em 1942 a sua produtora The Archers, iniciava-se uma colaboração a todos os níveis notável. Os filmes apareciam com a designação de terem sido “escritos, produzidos e realizados por Michael Powell e Emeric Pressburger” e esta comunhão de actividades  não escondia o facto de Pressburger ser predominantemente o argumentista e produtor e Power o realizador. Desta conjugação de talentos nasceram obras absolutamente invulgares, como “A Vida do Coronel Blimp” (1943), “Caso de Vida ou Morte” (1945), “Quando os Sinos Dobram” (1947), “Os Sapatos Vermelhos” (1948) ou “Os Contos de Hoffmann” (1951). O que melhor pode definir o trabalho destes dois génios do cinema inglês é um discreto afastamento do realismo e uma aproximação de uma estética surrealista, uma utilização invulgar do Technicolor, que atinge o seu apogeu em “Os Sapatos Vermelhos”, e a originalidade de escrita e de concepção plástica dos seus filmes, onde é sempre sensível um lirismo forte.
“The Red Shoes” parte de um conto, uma história de fadas, do dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), publicado em 1845. É a partir deste autor que se encena o bailado “Os Sapatos Vermelhos” que nos fala de uma jovem órfã a quem a mãe adoptiva oferece um par de sapatos vermelhos que passam a exercer um fascínio evidente sobre a menina que se recusa a tirá-los e dança até à exaustão, dado que os sapatos parecem ter vida própria e uma exigência total. Um anjo anuncia então à rapariga que ela irá dançar até sucumbir, o que se manifesta como um castigo divino, dado que o vermelho dos sapatos é tido como ostentação, sensualidade, pacto com o mal, e ainda por cima a jovem se encontra em período de crisma, impedindo, portanto, essa “comunhão com Deus”. Levada pela sua frivolidade, irá dançar até à morte. Este o esquema do bailado que está no cerne do filme de Michael Powell e Emeric Pressburge.


Mas o filme possui uma história paralela que corre em simultâneo com o bailado. Boris Lermontov é o proprietário e produtor de uma importante companhia de bailado. Solitário, exigente, implacável, sedutor nesse distanciamento que impõe, Lermontov põe a arte e o bailado acima de tudo. Para ele não há vida privada, mas dádiva completa à arte. No caso da dança, esta imposição parece inegociável. Um dia descobre dois novos talentos, Victoria Page, uma bailarina desconhecida, onde ele surpreende um talento imenso, e Julian Craster, um jovem compositor. Ambos são contratados, quase ao mesmo tempo que é dispensada a estrela da companhia Irina Boronskaïa, com o pretexto deque é impossível manter-se bailarina ao mais alto nível e estar casada. Lermontov pede a Craster que crie uma partitura para o bailado novo, “Os Sapatos Vermelhos”, que será dançado por Victoria Page. A estreia é triunfal, tudo parece correr pelo melhor, tanto mais que o amor invade a companhia e Craster e Victoria se apaixonam e resolvem anunciar o seu casamento. Mas o amor aqui não é bem vindo, e Lermontov, fiel ao seu principio, despede director de orquestra e prima bailarina. Quando mais tarde os tenta reunir de novo, impõe o dilema à bailarina: ou o amor ou a dança e o final do bailado irá precipitar-se em repetição no final do filme.
Esta estrutura dramática permite criar um interessante triângulo tendo Victoria como vértice essencial. De um lado o produtor Lermontov, do outro o compositor Craster, um colocando a arte acima dos sentimentos pessoais, o outro tentando conciliar o amor e a arte. Esta luta interna que atravessa o corpo e os sentimentos de Victoria acabará por a levar à auto destruição. Mas o filme é muito mais ambíguo do que poderá parecer a uma simples leitura mais superficial. Será que Lermontov age como age movido apenas pelo interesse pela pureza da arte, ou será que por detrás dessa razão não estarão sobretudo ciúmes? Todo o comportamento de Lermontov desde o momento que descobre Victoria Page numa festa particular parece indicar um deslumbramento emocional. Ou será apenas a descoberta do talento? Ou a reunião de ambos? Vamos mais longe: será que Lermontov tem consciência dessa sua secreta paixão? Ou será que Lermontov vive obcecado apenas pela beleza dessa arte pura que é o bailado e que exige entrega total, uma entrega de tal forma total que ele próprio é o exemplo desse ideal, ele próprio “desiste” de Victoria para que a arte se cumpra, e por isso mesmo não admite que outro não compreenda essa renúncia em nome de um prazer (felicidade) individual?


Há muito de Pigmaleão na figura de Lermontov, assim como se poderá falar de Fausto. Mais ainda, Lermontov é nome de poeta russo. Uma das suas obras mais conhecidas, “O Demónio”, fala de um espírito maligno que se apodera da alma de uma jovem e a leva a abandonar o seu noivo. Haverá relação consciente?
O filme adquire uma progressão dramática muito interessante, iniciando-se como uma história que se aproxima do musical, com a descrição das personagens e dos locais e situações. Especial atenção é dada ao trabalho especifico dos bailarinos, das repetições, do esforço diário para a perfeição do gesto e da harmonia dos movimentos, para o domínio do corpo. Depois a estrutura vai lentamente moldando-se ao ballet que se ensaia, progressivamente se vai descortinando a colagem da personagem de Victoria Page e da protagonista do bailiado, com os sapatos vermelhos a funcionarem como elemento de transição e identificação. Durante a longa sequência do bailado a fusão é total e a partir daí tudo se altera. Victoria assumiu um destino, o seu destino. Ela será para sempre a protagonista de “Os Sapatos Vermelhos” e de tal forma o será que, mesmo na sua ausência, será a sua interpretação a dar forma à derradeira representação.
Duas interpretações fulgurantes colocam a obra no seu pedestal definitivo. Anton Walbrook (em Boris Lermontov ) e Moira Shearer (em Victoria Page) compõem personagens que para sempre se lhes colaram à pele. Ao lado destes, há ainda a referir Ludmilla Tchérina, Marius Goring, Léonide Massine, Robert Helpmann, Albert Bassermann, entre outros. Mas nada ficaria perfeito nesta obra-prima indiscutível, não fora o exuberante e espatodo tratamento cromático da fotografia de Jack Cardiff, a magnifica partitura musical de Brian Easdale, a excelente montagem de Reginald Mills, e toda a concepção plástica e cénica não só do bailado, como de todo o filme.



OS SAPATOS VERMELHOS
Título original: The Red Shoes
Realização: Michael Powell, Emeric Pressburger (Inglaterra, 1948); Argumento: Emeric Pressburger, Keith Winter, Michael Powell, segundo conto de fadas de Hans Christian Andersen; Produção: Michael Powell, Emeric Pressburger; Música: Brian Easdale; Fotografia (cor): Jack Cardiff; Montagem:  Reginald Mills; Design de produção:  Hein Heckroth; Direcção artística:  Arthur Lawson; Guarda-roupa:  Hein Heckroth; Maquilhagem:  George Blackler, Eric Carter, Ernest Gasser; Assistentes de realização: Sydney Streeter, J.M. Gibson, Laurie Knight, Kenneth K. Rick; Departamento de arte: Alfred Roberts, Bernard Goodwin, G. Heavens, Don Picton, V. Shaw, V.B. Wilkins, Alan Withy; Som: Charles Poulton; Efeitos visuais: George Gunn, E. Hague; Companhias de produção: The Archers, Independent Producers; Intérpretes: Anton Walbrook (Boris Lermontov ), Marius Goring (Julian Craster), Moira Shearer (Victoria Page), Ludmilla Tchérina (Boronskaja (as Ludmilla Tcherina), Léonide Massine (Grischa Ljubov), Robert Helpmann (Ivan Boleslawsky), Albert Bassermann (Sergei Ratov), Esmond Knight (Livingstone 'Livy' Montagne), Jean Short, Gordon Littmann, Julia Lang, Bill Shine, Austin Trevor, Eric Berry, Irene Browne, Jerry Verno, Derek Elphinstone, Marie Rambert, Joy Rawlins, Marcel Poncin, Michel Bazalgette, Yvonne Andre, Hay Petrie, Alan Carter, Joan Harris, Joan Sheldon, Paula Dunning, Brian Ashbridge, Denis Carey, Lynne Dorval, Helen Ffrance, Robert Dorning, Eddie Gaillard, Paul Hammond, Tommy Linden, Trisha Linova, Anna Marinova, Guy Massey, John Regan, Peggy Sager, Ruth Sendler, Hilda Gaunt, etc. Duração: 133 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/ 6 anos; Data de estreia em Portugal: 23 de Fevereiro de 1950.

ANTON WALBROOK (1896-1967)
Adolf Anton Wohlbrück, mais tarde conhecido como Anton Walbrook, nasceu a 19 de Novembro de 1896 em Viena, Áustria, e viria a falecer a 9 de Agosto de 1967, em Garatshausen, Bavière (RFA). Aluno de Max Reinhardt em Berlim, inicia a sua carreira no teatro e no cinema, começando a ser notado num filme de E.A. Dupont  “Salto Mortale” (1931). Em 1935, as versões alemã, francesa e norte-americana de Miguel Strogoff, assinadas por Richard Eichberg, dão-lhe renome internacional. Judeu e homossexual, foge da Alemanha, perante a ameaça nazi e passa a viver em Inglaterra, sob o nome de Anton Walbrook. Extremamente elegante e algo aristocrata no porte, distante e ligeiramente irónico, interpreta vários papeis em produções históricas e ganha reputação internacional em obras de Michael Powell e Emeric Pressburger, como “49e Parallèle” (1941), “Colonel Blimp” (1943) ou “The Red Shoes” (1948). Trabalha com Thorold Dickinson, Max Ophuls  e Otto Preminger, sendo “I Accuse!”, de José Ferrer, o seu último trabalho no cinema. Passa também pela televisão, antes de falecer, em 1967, vítima de ataque cardíaco. Os restos mortais foram incinerados e as cinzas enterradas na igreja de St John-at-Hampstead, em Londres, como vontade expressa no testamento. Presentemente é um actor muito admirado e considerado por alguns (Martin Scorsese, por exemplo) como um dos melhores intérpretes de sempre. 

Filmografia
Como actor
Na Áustria e na Alemanha: 1915: Marionetten, de Richard Löwenbein; 1923: Martin Luther, de Karl Wüstenhagen; 1924: Mater Dolorosa, de Josef Delmont; 1925: Das Geheimnis von Schloß Elmshöh, de Max Obal; 1931: Salto Mortale, de Ewald André Dupont; 1932: Der Stolz der 3. Kompanie, de Fred Sauer; 1932: Die fünf verfluchten Gentlemen, de Julien Duvivier; Drei von der Stempelstelle, de Eugen Thiele; Melodie der Liebe, de Georg Jacoby; Baby, de Carl Lamac; 1933: Georges et Georgette (Jorge e Georgina), de Roger Le Bon e Reinhold Schünzel; Walzerkrieg, de Ludwig Berger; Keine Angst vor Liebe (Patrões e Empregadas), de Hans Steinhoff; Viktor und Viktoria, de Reinhold Schünzel; 1934: Die vertauschte Braut (As Duas Annys), de Carl Lamac; Maskerade (Mascarada), de Willi Forst; Eine Frau, die weiß, was sie will, de Viktor Janson; Die englische Heirat (Um Casamento Inglês), de Reinhold Schünzel; 1935: Régine (Regina), de Erich Waschneck; Zigeunerbaron, de Karl Hartl; Le Baron tzigane (O Barão Cigano), de Henri Chomette; Ich war Jack Mortimer, de Carl Froelich; Der Student von Prag (O Estudante de Praga), de Arthur Robison; 1936: Michel Strogoff (Miguel Strogoff), de Jacques de Baroncelli e Richard Eichberg (versão francesa); Der Kurier des Zaren (Miguel Strogoff), de Richard Eichberg (versão alemã); Allotria, de Willi Forst; Port-Arthur (Porto Arthur), de Nicolas Farkas;
Após abandonar a Alemanha: 1937: The Soldier and the Lady, de George Nichols Jr.; Victoria the Great (Rainha Vitória), de Herbert Wilcox; The Rat, de Jack Raymond; 1938: Sixty Glorious Years (60 Anos de Glória), de Herbert Wilcox; 1940: Gaslight, de Thorold Dickinson; 1941: Dangerous Moonlight (Aquela Noite em Varsóvia), de Brian Desmond Hurst; 49th Parallel (Os Invasores), de Michael Powell; 1943: The Life and Death of Colonel Blimp (A Vida do Coronel Blimp), de Michael Powell e Emeric Pressburger; 1944: Information Please (curta-metragem)
1945: The Man from Morocco, de Mutz Greenbaum; 1948: The Red Shoes (Os Sapatos Vermelhos), de Michael Powell ed Emeric Pressburger; 1949: The Queen of Spades (A Dama de Espadas), de Thorold Dickinson; 1950: La Ronde (A Ronda), de Max Ophüls; König für eine Nacht, de Paul May; 1951: Wiener Walzer, de Emil E. Reinert; 1952: Le Plaisir (O Prazer), de Max Ophüls (narrador da versão alemã); 1954: L'Affaire Maurizius (O Caso Maurizius), de Julien Duvivier; 1955: Oh... Rosalinda!! (Contos Vienenses), de Michael Powell e Emeric Pressburger; Lola Montès (Lola Montes), de Max Ophüls; 1957: Saint Joan (Santa Joana), de Otto Preminger; 1958: I Accuse!, de José Ferrer; 1960: Venus im Licht (TV); 1962: Laura (TV); 1963: Der Arzt am Scheideweg (TV); 1966: Robert und Elisabeth (TV).

MOIRA SHEARER 
(1926-2006)
Moira Shearer King nasceu a 17 de Janeiro de 1926 , em Dunfermline, Fife, Escócia, e viria a falecer, a 31 de Janeiro de 2006 , em Oxford, Oxfordshire, Inglaterra. Filha de Harold Charles King, actor (ou engenheiro civil, segundo outras fontes), mudou-se com a família para Ndola, na Rodésia do Norte (Zambia), em 1931, onde iniciou as suas aulas de ballet. Estudou na Dunfermline High School. De novo no Reino Unido, a partir de 1936, continuou a estudar dança, agora com Flora Fairbairn, em Londres, e depois com o russo Nicholas Legat. Junta-se então à Sadler's Wells Ballet School. Com o início da II Guerra Mundial, volta a Escócia. Em 1948, porém, já em Londres, atrai o interesse internacional com o seu fulgurante trabalho no filme “The Red Shoes”, da dupla Michael Powell e Emeric Pressburger. Entre 1942 e 1952 torna-se numa das primeiras bailarinas clássicas de renome mundial, com um vasto reportório e tournées internacionais, sendo a bailarina número um do Royal Ballet at Sadler's Wells. Casou, em 1950, com Ludovic Kennedy, jornalista e radialista, com quem viveu até sua morte e passou a escrever uma coluna no “Daily Telegraph”, a comentar livros no "Daily Journal", e a apresentar palestras por todo o mundo. Conta-se que Arthur Freed a queria para contracenar com Fred Astaire em “Casamento Real” (1951), mas Astaire mostrou-se relutante em acompanhar uma bailarina clássica.  Gene Kelly, por seu turno, queria-a como partenaire em “A Lenda dos Beijos Perdidos” (1954), mas neste caso foi ela que não se mostrou disponível.  Para todos os efeitos, para o bem e pra o mal, nunca mais se libertaria da personagem de Vicky de “Os Sapatos Vermelhos”.

Filmografia:
Como actriz e bailarina

1948: The Red Shoes (Os Sapatos Vermelhos), de Michael Powell e Emeric Pressburger; 1951: The Tales of Hoffmann (Os Contos de Hoffmann), de Michael Powell e Emeric Pressburger; 1953: The Story of Three Loves (História de Três Amores), filme em episódios, de Vincente Minnelli e Gottfried Reinhardt (episódio “The Jealous Lover”, de Gottfried Reinhardt); 1955: The Man Who Loved Redheads, de Harold French; 1960: Les Collants Noirs (Um, Dois, Três, Quatro),  de Terence Young; 1960: Peeping Tom (A Vítima do Medo), de Michael Powell; 1987: A Simple Man, de Gillian Lynne (TV).

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