OS SAPATOS
VERMELHOS (1948)
Quando Michael Powell e Emeric
Pressburge criaram em 1942 a sua
produtora The Archers, iniciava-se uma colaboração a todos os níveis notável.
Os filmes apareciam com a designação de terem sido “escritos, produzidos e
realizados por Michael Powell e Emeric Pressburger” e esta comunhão de
actividades não escondia o facto de
Pressburger ser predominantemente o argumentista e produtor e Power o
realizador. Desta conjugação de talentos nasceram obras absolutamente
invulgares, como “A Vida do Coronel Blimp” (1943), “Caso de Vida ou Morte”
(1945), “Quando os Sinos Dobram” (1947), “Os Sapatos Vermelhos” (1948) ou “Os
Contos de Hoffmann” (1951). O que melhor pode definir o trabalho destes dois
génios do cinema inglês é um discreto afastamento do realismo e uma aproximação
de uma estética surrealista, uma utilização invulgar do Technicolor, que atinge
o seu apogeu em “Os Sapatos Vermelhos”, e a originalidade de escrita e de
concepção plástica dos seus filmes, onde é sempre sensível um lirismo forte.
“The Red Shoes” parte de um
conto, uma história de fadas, do dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875),
publicado em 1845. É a partir deste autor que se encena o bailado “Os Sapatos
Vermelhos” que nos fala de uma jovem órfã a quem a mãe adoptiva oferece um par
de sapatos vermelhos que passam a exercer um fascínio evidente sobre a menina
que se recusa a tirá-los e dança até à exaustão, dado que os sapatos parecem
ter vida própria e uma exigência total. Um anjo anuncia então à rapariga que
ela irá dançar até sucumbir, o que se manifesta como um castigo divino, dado
que o vermelho dos sapatos é tido como ostentação, sensualidade, pacto com o
mal, e ainda por cima a jovem se encontra em período de crisma, impedindo,
portanto, essa “comunhão com Deus”. Levada pela sua frivolidade, irá dançar até
à morte. Este o esquema do bailado que está no cerne do filme de Michael Powell
e Emeric Pressburge.
Mas o filme possui uma
história paralela que corre em simultâneo com o bailado. Boris Lermontov é o
proprietário e produtor de uma importante companhia de bailado. Solitário,
exigente, implacável, sedutor nesse distanciamento que impõe, Lermontov põe a
arte e o bailado acima de tudo. Para ele não há vida privada, mas dádiva
completa à arte. No caso da dança, esta imposição parece inegociável. Um dia
descobre dois novos talentos, Victoria Page, uma bailarina desconhecida, onde
ele surpreende um talento imenso, e Julian Craster, um jovem compositor. Ambos
são contratados, quase ao mesmo tempo que é dispensada a estrela da companhia
Irina Boronskaïa, com o pretexto deque é impossível manter-se bailarina ao mais
alto nível e estar casada. Lermontov pede a Craster que crie uma partitura para
o bailado novo, “Os Sapatos Vermelhos”, que será dançado por Victoria Page. A
estreia é triunfal, tudo parece correr pelo melhor, tanto mais que o amor
invade a companhia e Craster e Victoria se apaixonam e resolvem anunciar o seu
casamento. Mas o amor aqui não é bem vindo, e Lermontov, fiel ao seu principio,
despede director de orquestra e prima bailarina. Quando mais tarde os tenta
reunir de novo, impõe o dilema à bailarina: ou o amor ou a dança e o final do
bailado irá precipitar-se em repetição no final do filme.
Esta estrutura dramática
permite criar um interessante triângulo tendo Victoria como vértice essencial.
De um lado o produtor Lermontov, do outro o compositor Craster, um colocando a
arte acima dos sentimentos pessoais, o outro tentando conciliar o amor e a
arte. Esta luta interna que atravessa o corpo e os sentimentos de Victoria
acabará por a levar à auto destruição. Mas o filme é muito mais ambíguo do que
poderá parecer a uma simples leitura mais superficial. Será que Lermontov age
como age movido apenas pelo interesse pela pureza da arte, ou será que por
detrás dessa razão não estarão sobretudo ciúmes? Todo o comportamento de
Lermontov desde o momento que descobre Victoria Page numa festa particular
parece indicar um deslumbramento emocional. Ou será apenas a descoberta do
talento? Ou a reunião de ambos? Vamos mais longe: será que Lermontov tem
consciência dessa sua secreta paixão? Ou será que Lermontov vive obcecado
apenas pela beleza dessa arte pura que é o bailado e que exige entrega total,
uma entrega de tal forma total que ele próprio é o exemplo desse ideal, ele
próprio “desiste” de Victoria para que a arte se cumpra, e por isso mesmo não
admite que outro não compreenda essa renúncia em nome de um prazer (felicidade)
individual?
Há muito de Pigmaleão na
figura de Lermontov, assim como se poderá falar de Fausto. Mais ainda,
Lermontov é nome de poeta russo. Uma das suas obras mais conhecidas, “O
Demónio”, fala de um espírito maligno que se apodera da alma de uma jovem e a
leva a abandonar o seu noivo. Haverá relação consciente?
O filme adquire uma progressão
dramática muito interessante, iniciando-se como uma história que se aproxima do
musical, com a descrição das personagens e dos locais e situações. Especial
atenção é dada ao trabalho especifico dos bailarinos, das repetições, do
esforço diário para a perfeição do gesto e da harmonia dos movimentos, para o
domínio do corpo. Depois a estrutura vai lentamente moldando-se ao ballet que
se ensaia, progressivamente se vai descortinando a colagem da personagem de
Victoria Page e da protagonista do bailiado, com os sapatos vermelhos a
funcionarem como elemento de transição e identificação. Durante a longa
sequência do bailado a fusão é total e a partir daí tudo se altera. Victoria
assumiu um destino, o seu destino. Ela será para sempre a protagonista de “Os
Sapatos Vermelhos” e de tal forma o será que, mesmo na sua ausência, será a sua
interpretação a dar forma à derradeira representação.
Duas interpretações
fulgurantes colocam a obra no seu pedestal definitivo. Anton Walbrook (em Boris
Lermontov ) e Moira Shearer (em Victoria Page) compõem personagens que para
sempre se lhes colaram à pele. Ao lado destes, há ainda a referir Ludmilla
Tchérina, Marius Goring, Léonide Massine, Robert Helpmann, Albert Bassermann,
entre outros. Mas nada ficaria perfeito nesta obra-prima indiscutível, não fora
o exuberante e espatodo tratamento cromático da fotografia de Jack Cardiff, a
magnifica partitura musical de Brian Easdale, a excelente montagem de Reginald
Mills, e toda a concepção plástica e cénica não só do bailado, como de todo o
filme.
OS SAPATOS
VERMELHOS
Título
original: The Red Shoes
Realização: Michael
Powell, Emeric Pressburger (Inglaterra, 1948); Argumento: Emeric Pressburger,
Keith Winter, Michael Powell, segundo conto de fadas de Hans Christian
Andersen; Produção: Michael Powell, Emeric Pressburger; Música: Brian Easdale;
Fotografia (cor): Jack Cardiff; Montagem:
Reginald Mills; Design de produção:
Hein Heckroth; Direcção artística:
Arthur Lawson; Guarda-roupa: Hein
Heckroth; Maquilhagem: George Blackler,
Eric Carter, Ernest Gasser; Assistentes de realização: Sydney Streeter, J.M.
Gibson, Laurie Knight, Kenneth K. Rick; Departamento de arte: Alfred Roberts,
Bernard Goodwin, G. Heavens, Don Picton, V. Shaw, V.B. Wilkins, Alan Withy;
Som: Charles Poulton; Efeitos visuais: George Gunn, E. Hague; Companhias de
produção: The Archers, Independent Producers; Intérpretes: Anton Walbrook (Boris Lermontov ), Marius Goring
(Julian Craster), Moira Shearer (Victoria Page), Ludmilla Tchérina (Boronskaja
(as Ludmilla Tcherina), Léonide Massine (Grischa Ljubov), Robert Helpmann (Ivan
Boleslawsky), Albert Bassermann (Sergei Ratov), Esmond Knight (Livingstone
'Livy' Montagne), Jean Short, Gordon Littmann, Julia Lang, Bill Shine, Austin
Trevor, Eric Berry, Irene Browne, Jerry Verno, Derek Elphinstone, Marie
Rambert, Joy Rawlins, Marcel Poncin, Michel Bazalgette, Yvonne Andre, Hay
Petrie, Alan Carter, Joan Harris, Joan Sheldon, Paula Dunning, Brian Ashbridge,
Denis Carey, Lynne Dorval, Helen Ffrance, Robert Dorning, Eddie Gaillard, Paul
Hammond, Tommy Linden, Trisha Linova, Anna Marinova, Guy Massey, John Regan,
Peggy Sager, Ruth Sendler, Hilda Gaunt, etc. Duração: 133 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo;
Classificação etária: M/ 6 anos; Data de estreia em Portugal: 23 de Fevereiro
de 1950.
ANTON WALBROOK (1896-1967)
Adolf Anton Wohlbrück, mais
tarde conhecido como Anton Walbrook, nasceu a 19 de Novembro de 1896 em Viena,
Áustria, e viria a falecer a 9 de Agosto de 1967, em Garatshausen, Bavière
(RFA). Aluno de Max Reinhardt em Berlim, inicia a sua carreira no teatro e no
cinema, começando a ser notado num filme de E.A. Dupont “Salto Mortale” (1931). Em 1935, as versões
alemã, francesa e norte-americana de Miguel Strogoff, assinadas por Richard
Eichberg, dão-lhe renome internacional. Judeu e homossexual, foge da Alemanha,
perante a ameaça nazi e passa a viver em Inglaterra, sob o nome de Anton
Walbrook. Extremamente elegante e algo aristocrata no porte, distante e
ligeiramente irónico, interpreta vários papeis em produções históricas e ganha
reputação internacional em obras de Michael Powell e Emeric Pressburger, como
“49e Parallèle” (1941), “Colonel Blimp” (1943) ou “The Red Shoes” (1948).
Trabalha com Thorold Dickinson, Max Ophuls
e Otto Preminger, sendo “I Accuse!”, de José Ferrer, o seu último
trabalho no cinema. Passa também pela televisão, antes de falecer, em 1967,
vítima de ataque cardíaco. Os restos mortais foram incinerados e as cinzas
enterradas na igreja de St John-at-Hampstead, em Londres, como vontade expressa
no testamento. Presentemente é um actor muito admirado e considerado por alguns
(Martin Scorsese, por exemplo) como um dos melhores intérpretes de sempre.
Filmografia
Como actor
Na Áustria e na Alemanha: 1915: Marionetten, de Richard Löwenbein;
1923: Martin Luther, de Karl Wüstenhagen; 1924: Mater Dolorosa, de Josef
Delmont; 1925: Das Geheimnis von Schloß Elmshöh, de Max Obal; 1931: Salto
Mortale, de Ewald André Dupont; 1932: Der Stolz der 3. Kompanie, de Fred Sauer;
1932: Die fünf verfluchten Gentlemen, de Julien Duvivier; Drei von der
Stempelstelle, de Eugen Thiele; Melodie der Liebe, de Georg Jacoby; Baby, de Carl
Lamac; 1933: Georges et Georgette (Jorge e Georgina), de Roger Le Bon e
Reinhold Schünzel; Walzerkrieg, de Ludwig Berger; Keine Angst vor Liebe (Patrões
e Empregadas), de Hans Steinhoff; Viktor und Viktoria, de Reinhold Schünzel;
1934: Die vertauschte Braut (As Duas Annys), de Carl Lamac; Maskerade (Mascarada),
de Willi Forst; Eine Frau, die weiß, was sie will, de Viktor Janson; Die
englische Heirat (Um Casamento Inglês), de Reinhold Schünzel; 1935: Régine (Regina),
de Erich Waschneck; Zigeunerbaron, de Karl Hartl; Le Baron tzigane (O Barão
Cigano), de Henri Chomette; Ich war Jack Mortimer, de Carl Froelich; Der
Student von Prag (O Estudante de Praga), de Arthur Robison; 1936: Michel
Strogoff (Miguel Strogoff), de Jacques de Baroncelli e Richard Eichberg (versão
francesa); Der Kurier des Zaren (Miguel Strogoff), de Richard Eichberg (versão alemã);
Allotria, de Willi Forst; Port-Arthur (Porto Arthur), de Nicolas Farkas;
Após abandonar a Alemanha: 1937: The Soldier and the Lady, de George
Nichols Jr.; Victoria the Great (Rainha Vitória), de Herbert Wilcox; The Rat,
de Jack Raymond; 1938: Sixty Glorious Years (60 Anos de Glória), de Herbert
Wilcox; 1940: Gaslight, de Thorold Dickinson; 1941: Dangerous Moonlight (Aquela
Noite em Varsóvia), de Brian Desmond Hurst; 49th Parallel (Os Invasores), de Michael
Powell; 1943: The Life and Death of Colonel Blimp (A Vida do Coronel Blimp), de
Michael Powell e Emeric Pressburger; 1944: Information Please (curta-metragem)
1945: The Man from Morocco, de
Mutz Greenbaum; 1948: The Red Shoes (Os Sapatos Vermelhos), de Michael Powell
ed Emeric Pressburger; 1949: The Queen of Spades (A Dama de Espadas), de Thorold
Dickinson; 1950: La Ronde (A Ronda), de Max Ophüls; König für eine Nacht, de Paul
May; 1951: Wiener Walzer, de Emil E. Reinert; 1952: Le Plaisir (O Prazer), de Max
Ophüls (narrador da versão alemã); 1954: L'Affaire Maurizius (O Caso Maurizius),
de Julien Duvivier; 1955: Oh... Rosalinda!! (Contos Vienenses), de Michael
Powell e Emeric Pressburger; Lola Montès (Lola Montes), de Max Ophüls; 1957:
Saint Joan (Santa Joana), de Otto Preminger; 1958: I Accuse!, de José Ferrer;
1960: Venus im Licht (TV); 1962: Laura (TV); 1963: Der Arzt am Scheideweg (TV);
1966: Robert und Elisabeth (TV).
MOIRA SHEARER
(1926-2006)
Moira Shearer King nasceu a 17
de Janeiro de 1926 , em Dunfermline, Fife, Escócia, e viria a falecer, a 31 de
Janeiro de 2006 , em Oxford, Oxfordshire, Inglaterra. Filha de Harold Charles
King, actor (ou engenheiro civil, segundo outras fontes), mudou-se com a família
para Ndola, na Rodésia do Norte (Zambia), em 1931, onde iniciou as suas aulas
de ballet. Estudou na Dunfermline High School. De novo no Reino Unido, a partir
de 1936, continuou a estudar dança, agora com Flora Fairbairn, em Londres, e
depois com o russo Nicholas Legat. Junta-se então à Sadler's Wells Ballet
School. Com o início da II Guerra Mundial, volta a Escócia. Em 1948, porém, já
em Londres, atrai o interesse internacional com o seu fulgurante trabalho no
filme “The Red Shoes”, da dupla Michael Powell e Emeric Pressburger. Entre 1942
e 1952 torna-se numa das primeiras bailarinas clássicas de renome mundial, com
um vasto reportório e tournées internacionais, sendo a bailarina número um do
Royal Ballet at Sadler's Wells. Casou, em 1950, com Ludovic Kennedy, jornalista
e radialista, com quem viveu até sua morte e passou a escrever uma coluna no
“Daily Telegraph”, a comentar livros no "Daily Journal", e a
apresentar palestras por todo o mundo. Conta-se que Arthur Freed a queria para
contracenar com Fred Astaire em “Casamento Real” (1951), mas Astaire mostrou-se
relutante em acompanhar uma bailarina clássica.
Gene Kelly, por seu turno, queria-a como partenaire em “A Lenda dos
Beijos Perdidos” (1954), mas neste caso foi ela que não se mostrou disponível. Para todos os efeitos, para o bem e pra o
mal, nunca mais se libertaria da personagem de Vicky de “Os Sapatos Vermelhos”.
Filmografia:
Como actriz e bailarina
1948: The Red Shoes (Os
Sapatos Vermelhos), de Michael Powell e Emeric Pressburger; 1951: The Tales of
Hoffmann (Os Contos de Hoffmann), de Michael Powell e Emeric Pressburger; 1953:
The Story of Three Loves (História de Três Amores), filme em episódios, de
Vincente Minnelli e Gottfried Reinhardt (episódio “The Jealous Lover”, de
Gottfried Reinhardt); 1955: The Man Who Loved Redheads, de Harold French; 1960:
Les Collants Noirs (Um, Dois, Três, Quatro),
de Terence Young; 1960: Peeping Tom (A Vítima do Medo), de Michael
Powell; 1987: A Simple Man, de Gillian Lynne (TV).
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