ROUBEI UM MILHÃO (1951)
Nas
primeiras imagens de “Roubei um Milhão” encontramos dois ingleses sentados à
mesa de um luxuoso restaurante tropical (saberemos depois que se tratada cidade
do Rio de Janeiro), enquanto um deles vai distribuindo notas e conta ao outro
como se tornou milionário. Realmente só um milionário muito desprendido, lança
notas à toa aos empregados, a organizações de senhoras da alta roda que lutam
contra as revoluções, a obras sociais, ou mesmo a jovens meninas muito bonitas
e cheias de futuro (ou não fosse essa Chiquita que surge nos momentos iniciais
de “Roubei um Milhão” um dos primeiros papeis no cinema de Audrey Hepburn).
Holland (Alec Guiness) é o narrador, de sorriso tímido e esbanjador de notas.
Conta como antigamente era um honesto e solicito supervisor de banco,
encarregue de acompanhar as barras de ouro que saiam da fundição e iam ser
arrecadadas nos cofres do banco. É visto por todos como um funcionário
escrupuloso, metódico, rigoroso, maníaco nos pormenores, motivo mesmo de alguma
chacota dos colegas. Alec Guinness é simplesmente brilhante na forma como
encarna essa personagem cinzenta, acanhada, algo acabrunhada mesmo, que passa
pela vida sem dar por ela. Dir-se-ia que assim era. Mas Holland tem sonhos
secretos e um deles é ser milionário e tornar seus aqueles lingotes de ouro que
diariamente transporta numa carrinha que, um dia, quem sabe?, pode ser
assaltada por um gang de que ele seja o mentor. O “The Lavender Hill Mob”, o
gang de Lavender Hill, nome de uma colina de Londres onde se reúnem os
elementos escolhidos por Holland para levar a cabo tão extraordinária façanha.
É
assim, no Brasil, em jeito de conto de fadas, que começa esta comédia, dirigida
por um sólido realizador inglês deste período, Charles Crichton, que realiza
para os Earling Studios outro clássico do humor inglês. Partindo desta
narrativa, inicia-se um longo flashback que irá contar todas as peripécias
deste roubo de um banco levado a cabo por um estranho grupo de zé ninguéns que
assaltam a carrinha, desciam as barras de ouro, as fundem, delas fazem pequenas
estatuetas de torres Eiffel que, depois, enviam para Paris como souvenirs, com
a indicação de que aquelas duas caixas não se destinam a ser colocadas à venda.
Mas uma excursão de jovens estudantes inglesas empolgadas com as recordações,
acabam por comprar seis dessas imagens, e criar a histeria junto do grupo de
assaltantes.
Como
em quase todas as comédias dos Earling Studios, os heróis são uns pobres de
Cristo que, aparentemente, não têm onde cair mortos, mas que armazenaram dentro
de si um capital de vingança ou de sede de justiça que os leva a ultrapassar
uma série de perigos. A verdade é que a falta de experiência e de jeito parece
tornar impossível o empreendimento, mas a sorte está do seu lado. Enfim, quase
até ao fim, porque em todas estas comédias mais ou menos negras a justiça acaba
por vencer, mas de uma forma algo capciosa. O politicamente correcto é
restabelecido, mas o espectador fica com algumas dúvidas sobre a sua eficácia.
Se a sorte favorece os meliantes, é igualmente a sorte que restabelece a
justiça, o que deixa tudo em águas turvas. Isso mesmo nos dizem obras como
“Whisky Galore!” (1949), “Passport to Pimlico” (1949), “Kind Hearts and
Coronets” (1949), “The Lavender Hill Mob” (1951), “The Man in the White Suit”
(1951), ou “The Ladykillers”, onde, de uma forma ou de outra, este esquema se
repete.
De
resto, o ambiente social que estes títulos nos oferecem da Inglaterra de
após-guerra é muito interessante e mesmo perturbador. Há um alternar de
retratos de extractos sociais diversos muito curioso. Entre os aristocratas de
“Kind Hearts and Coronets”, os banqueiros de “The Lavender Hill Mob” ou os
donos de fábricas de “The Man in the White Suit” e os seus opositores,
herdeiros excluídos ou fieis servidores revoltados, deixa-se entrever uma
discreta e surda luta de interesses que só na aparência se resolve. Este humor
amável, deliciosamente elegante e “distinto” acaba por esconder muita raiva e
desencanto. Uma das marcas dos Earling Studios, onde o homem comum sonha com um
futuro radioso que chega a tocar, mas que rapidamente se esboroa. Os filmes não
são resolutamente obras revolucionarias de sangue na guelra, mas sim
melancólicas meditações sobre o destino cinzento de personagens que todavia conseguem
tocar o céu e viver momentos de profunda felicidade. Quase sempre através de
meios não muito lícitos, segundo as regras vigentes, é verdade. Mas os
protagonistas destas aventuras marginais parecem aceitar sem grande mágoa o
destino que os espera no final das suas aventuras/desventuras. O que os leva a
intervir é o desejo de uns momentos de felicidade, a possibilidade de
concretizar um sonho, de ir mais alem do que o dia a dia sem horizontes do seu
quotidiano. Os patrões de Holland definem-no assim: “A sua única virtude é a
honestidade”. Suprema ironia, portanto.
O
argumento de “Roubei um Milhão”, da autoria de T.E.B. Clarke, acabaria por
ganhar o Oscar de Melhor Argumento do ano, e o Alec Guiness esteve ainda
nomeado para Melhor Actor. Muitas outras recompensas lhe foram devidas. Foi
considerado o Melhor Filme inglês pelos BAFTAS, Charles Crichton foi nomeado
Melhor Realizador pela Guida dos Realizadores dos EUA, Alec Guiness ganhou o
prémio de Melhor Actor Estrangeiro do Sindicato dos Jornalistas Italianos e, no
Festival de Veneza, T.E.B. Clarke foi considerado o Melhor Argumentista. Deve
dizer-se porem que Stanley Holloway, na figura de Pendlebury, companheiro de
Holland na congeminação deste golpe, é igualmente notável.
ROUBEI UM MILHÃO
Título original: The Lavender Hill Mob
Realização: Charles Crichton (Inglaterra, 1951); Argumento: T.E.B.
Clarke; Produção: Michael Balcon, Michael Truman; Música: Georges Auric;
Fotografia (p/b): Douglas Slocombe; Montagem: Seth Holt; Casting: Margaret Harper
Nelson; Direcção artística: William Kellner; Guarda-roupa: Anthony Mendleson;
Maquilhagem: Ernest Taylor, Harry Wilton, Barbara Barnard; Direcção de
Produção: Slim Hand, Hal Mason; Assistentes de realização: Norman Priggen, John
Meadows, Jim O'Connolly; Departamento de arte: Andrew Low, George Speller, Bob
Tull; Som: Stephen Dalby; Efeitos
especiais: Sydney Pearson; Efeitos visuais: Geoffrey Dickinson, Bryan Langley;
Companhias de produção: J. Arthur Rank Organisation, Ealing Studios; Intérpretes: Alec Guinness (Holland),
Stanley Holloway (Pendlebury), Sidney James (Lackery), Alfie Bass (Shorty),
Marjorie Fielding (Mrs. Chalk), Edie Martin (Miss Evesham), John Salew
(Parkin), Ronald Adam (Turner), Arthur Hambling (Wallis), Gibb McLaughlin
(Godwin), John Gregson, Clive Morton, Sydney Tafler, Marie Burke, Audrey
Hepburn (Chiquita), William Fox, Michael Trubshawe, Ann Hefferman, Jacques B.
Brunius, Eugene Deckers, Paul Demel, Andreas Malandrinos, Cyril Chamberlain,
Tony Quinn, Moultrie Kelsall, Christopher Hewett, Meredith Edwards, Patrick
Barr, David Davies, Robert Shaw, John Warwick, etc. Duração:
81 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/
12 anos; Data de estreia em Portugal: 6 de Janeiro de 1952.
CHARLES CRICHTON
(1910 –1999)
Nasceu
a 6 de Agosto de 1910, em Wallasey, Cheshire, Inglaterra, e viria a falecer a
14 de Setembro de 1999, em South
Kensington, Inglaterra. Foi montador, realizador, argumentista, produtor, de
cinema e televisão, durante mais de 40 anos, durante os quais construiu uma
sólida carreira na industria cinematográfica britânica. trabalhou para
produtores como Alexander Korda (em obras como “Sanders of the River”, “Things
To Come”, “Elephant Boy”, ou “The Thief of Bagdad”). Iniciou-se como realizador
com uma curta-metragem, em 1941, “The Young Veterans”. Passou para os Ealing
Studios em 1944 onde se estreia na longa-metragem: “For Those in Peril”.
Assinou dezenas de obras, no cinema (onde alguns clássicos como “Roubei um
Milhão”, e na televisão. A pedido de John Cleese, Crichton aceitou regressar ao
cinema em 1888, para dirigir a comédia “Um Peixe Chamado Wanda”, que se
tornaria num dos maiores êxitos do cinema inglês dessa época. Foi o seu último
filme. Morreu com 89 anos, em Londres, em 1999.
Filmografia:
Como realizador
1941:
The Young Veterans (curta-metragem); 1944: For Those in Peril; 1945: Painted
Boats; 1945: Dead of Night (A Dança da Morte) (episódio "Golfing
Story"); 1947: Hue and Cry (Grito de Indignação); 1948: Against the Wind;
Another Shore; 1949: Train of Events (Quatro Sem Passaporte) (episódio
"The Composer"); 1950: Dance Hall; 1951: The Lavender Hill Mob
(Roubei Um Milhão); 1952: Hunted (A Alma de um Criminoso); 1953: The Titfield
Thunderbolt; 1954: The Love Lottery (A Lotaria do Amor); 1954: The Divided
Heart (Dêem-me o meu Filho); 1957: The Man in the Sky; ITV Play of the Week
(Série de TV) (1 episódio); 1958: Law and Disorder; 1959: Floods of Fear; The
Battle of the Sexes; 1960: The Boy Who Stole a Million; 1962-1963: Man of the
World (Série de TV) (3 episódios) 1963: The Human Jungle (Série de TV) (1
episódio); 1964: The Third Secret; 1962 O Prisioneiro de Alcatraz (não
creditado); 1964: Danger Man (Série de TV) (2 episódios)); 1965-1969: The
Avengers (Os Vingadores) (Série de TV) (5 episódios); 1965: He Who Rides a
Tiger; 1967: L'Homme à la valise (Man in a Suitcase) (série TV); 1967-1968: Man
in a Suitcase (Série de TV) (6 episódios); 1968: Strange Report (Série de TV)
(5 episódios); 1969: Light Entertainment Killers (TV); 1970: Here Come the
Double Deckers! (Série de TV) (1 episódio); 1971; Shirley's World (Série de TV)
(1 episódio); 1973-1974: The Protectors
(Série de TV) (5 episódios); 1972-1974: The Adventures of Black Beauty (Série
de TV) (15 episódios); 1975: NBC Special Treat (Série de TV) (1 episódio);
1976: Rentaghost (Série de TV) (1 episódio); The Day After Tomorrow (TV);
1975-1976: Space: 1999 (Espaço: 1999) (Série de TV) (14 episódios); 1976: Into
Infinity (TV); 1976: Cosmic Princess (TV); 1976: Alien Attack (Ataque Alienígena)
(TV); 1977 The Unorganized Manager, Part One: Damnation (documentário vídeo
curta-metragem); The Unorganized Manager, Part Two: Salvation (documentário
vídeo curta-metragem); The Unorganized Manager, Part Four: Revelations
(documentário vídeo curta-metragem); The Unorganized Manager, Part Three:
Lamentations (documentário vídeo curta-metragem); 1977: The Professionals)
(série de TV); 1979: Dick Turpin (série de TV) (10 episódios); 1981: Smuggler
(série de TV) (3 episódios); 1982: Princesa Cosmica (TV); 1983: Perishing
Solicitors (TV); 1984: More Bloody Meetings (documentário vídeo); 1988: A Fish
Called Wanda (Um Peixe Chamado Wanda).
Sem comentários:
Enviar um comentário