BREVE ENCONTRO (1945)
Laura
Jesson (Celia Johnson) é uma discreta dona de casa. Vive em Ketchworth, com o
marido, um filho e uma filha. Viaja uma vez por semana de comboio a Milford,
onde faz compras, troca livros na biblioteca e vai ao cinema. O Dr. Alec Harvey
(Trevor Howard) é igualmente casado, tem dois filhos, vive e dá consulta em
Churley, e vai semanalmente a Milford substituir um colega no hospital local,
onde aproveita para aprofundar os seus conhecimentos especializados sobre
pneumologia perante os efeitos de alguns ofícios. São duas vidas recatadas que
vivem o seu dia a dia sem sobressaltos. Até que um dia se cruzam na plataforma
da estação de Milford. Laura deixou entrar uma cinza para um dos olhos e Alec
apresta-se para a livrar do incómodo cisco. Agradecimentos da praxe, um café de
circunstância, uma despedida formal. Ela regressa para casa, onde o marido a
acolhe como sempre, amável e prestável, passando os serões a resolver problemas
de palavras cruzadas. Um beijo de boa noite e o dia que se segue. Igual. Sem
sobressaltos. Numa felicidade que dir-se-ia perfeita. Sobretudo para quem não
conheceu nunca o sobressalto da paixão. Que, no entanto, passa a habitar os
encontros cada vez mais regulares de Laura e Alec, até levar à confissão de um
amor e ao desejo da sua concretização, que nunca chega.
A
estação de caminhos de ferro de Milford é o cenário central desta história de
amor que, desde início, se supõe desencontrada: os seus comboios partem em
direcções contrárias, eles sabem que “nenhum deles é livre para amar o outro.”
Raras vezes um cenário natural terá tamanha importância na definição dramática
de um clima. A passagem dos comboios, o rasto de fumo por eles deixado, a
iluminação esconsa, o isolamento das plataformas, os enquadramentos dos planos,
em profundidade de campo, o ar intimista e secreto, mas perigoso, do cafezinho
da estação, onde a uma mesa do canto se acoitam os apaixonados, segredando
impossibilidades de sonhos, tudo isto faz deste “décor” um local de apetecível
mistério, refúgio arrojado de impronunciáveis amores, tímido anseio de
“inflamadas paixões” que ambos vêem no cinema local, de mãos dadas no escuro do
primeiro balcão.
“Nada
dura para sempre, nem a felicidade, nem a infelicidade”, sentencia Alec, e o
efeito da frase é, neste contexto, ambíguo. Realmente nada dura para sempre, há
momentos de escondida sofreguidão que, todavia, se descobrem tolhidos pelo
dilema moral que a situação encerra, entre escolher o amor e aceitar a mentira.
Mas
o eclodir do amor comporta os seus riscos. A confortável vida familiar, a roçar
o entediante, convida à aventura, ao risco, ao proibido. Passear de mãos dadas,
à chuva, pelo anoitecer de uma Milford de recantos sombrios é seguramente um
risco apetecível. Tanto mais que a fotografia a preto e branco de Robert
Krasker é deslumbrante e o concerto para piano nº 2 de Rachmaninov é uma banda sonora inspirada, que
sublinha devidamente as emoções sem as enfatizar em demasia.
O
médico sente igualmente o seu entusiasmo a transbordar. Ele só conhecia esta
felicidade com o trabalho, com a paixão que o avassala, como o descreve a
Laura, numa dessas conversa de café. Ser médico é jogar “com essa paixão,
sentir essa vocação, tal como um escritor, um pintor”, Laura compreende o que
Alec diz. Ela vive agora esse arrebatamento, esse impulso. Um “flirt” com um
estranho rapidamente se transforma nessa vertigem. Mas, em simultâneo, sobe o
sentimento de culpa, sofre intimamente da indignidade dos gestos e das falsidades,
sente a sordidez de certas situações, sobretudo quando é apanhada em falta no
apartamento do colega de Alec, regressado a destempo.
Esta
intriga podia derrapar facilmente para o melodrama xaroposo ou para um
moralismo puritano intragável, mas o segredo de David Lean é esse mesmo, manter
o nível altíssimo, nunca pactuar com a facilidade, nunca ir pelo caminho mais
simples. Manter a ambiguidade que permite desenvolver as emoções sem recurso a
chavões, o que vai desembocar num final de sublime obscuridade ou clareza,
quando o marido vê Laura olhá-lo e este se aproxima dela para lhe dizer:
“Estiveste afastada muito tempo. Obrigado por teres voltado para mim”. O
adultério não concretizado, mas assumido, levou o filme a ser proibido na
Irlanda, à data da estreia, “por mostrar o adultério sob uma perspectiva
simpática”. O que não deixa de ser surpreendente por um lado, mas demonstra,
por outro, a ambiguidade da proposta.
“Brief
Encounter” parte de uma peça teatral de Noel Coward (“Still Life”), adaptada
brilhantemente ao cinema por David Lean (e pelo próprio Noel Coward, enquanto
um dos responsáveis pelo empreendimento, como produtor), juntamente com Anthony
Havelock-Allan, e Ronald Neame. O filme estreia-se em 1945, o que pressupõe um
rodagem durante a II Guerra Mundial, com a Inglaterra a sofrer as consequências
dos bombardeamentos nazis e as suas tropas a combaterem no continente europeu.
O final da obra terá sido pacificador para os soldados que regressam a casa, e
encontram as mulheres à sua espera, “eles, que nessa altura regressam para
elas”. Mas há um outro aspecto que é interessante sublinhar: a vida quotidiana
na Inglaterra desse tempo, que transparece subtilmente durante a visão deste
“Breve Encontro”, com a curiosidade de se perceber que, mesmo durante a
brutalidade da guerra, a cinematografia inglesa manteve o nível que esta obra
testemunha e a fina e complexa sensibilidade que a mesma ostenta. Com
interpretações de uma delicadeza extrema, onde Celia Johnson e Trevor Howard
sobressaem, mas onde é igualmente de referir o trabalho de Stanley Holloway
(Albert Godby) e Joyce Carey (Myrtle Bagot), um casal de divertidos “compères”
que enchem de humor os seus diálogos no balcão do café da gare de Milford.
Creio
que muitos filmes se realizaram, posteriormente, tendo “Breve Encontro” como
referência. Um deles terá sido possivelmente o magnífico “As Pontes de Madison
County”, de Clynt Eastwood.
BREVE ENCONTRO
Título original: Brief Encounter
Realização: David Lean
(Inglaterra, 1945); Argumento: Anthony Havelock-Allan, David Lean, Ronald
Neame, segundo peça teatral de Noel Coward ("Still Life"); Produção:
Noel Coward, Anthony Havelock-Allan, Ronald Neame; Música: Rachmaninov
(Concerto para Piano No. 2) (tema musical): Percival Mackey (música adiciona);
John Hollingsworth (director musical); Fotografia (p/b): Robert Krasker;
Montagem: Jack Harris; Direcção artística: Lawrence P. Williams; Direcção de
Produção: Anthony Havelock-Allan, E.J. Holding, Ronald Neame; Assistentes de
realização: George Pollock, Victor Wark; Departamento de arte: G.E. Calthrop,
William Kellner; Som: Desmond Dew, Stanley Lambourne, Harry Miller; Efeitos
especiais: George Blackwell; Efeitos visuais: Charles Staffell; Companhias de
produção: Cineguild; Intérpretes:
Celia Johnson (Laura Jesson), Trevor Howard (Dr. Alec Harvey), Stanley Holloway
(Albert Godby), Joyce Carey (Myrtle Bagot), Cyril Raymond(Fred Jesson), Everley
Gregg (Dolly Messiter), Marjorie Mars (Mary Norton), Margaret Barton (Beryl
Walters), Wilfred Babbage, Alfie Bass, Wallace Bosco, Sydney Bromley, Nuna
Davey, Valentine Dyall, Irene Handl, Dennis Harkin, Edward Hodge, Jack May,
Avis Scott, George V. Sheldon, Richard Thomas, Henrietta Vincent, etc. Duração: 86 minutos; Distribuição em
Portugal (DVD): Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em
Portugal (cinema): 14 de Abril de 1947.
DAVID LEAN (1908-1991)
Nasceu a 25 de
Março de 1908, em Croydon, Surrey, Inglaterra, Reino Unido; Faleceu a 16 de
Abril de 1991, em Londres. Em 2002, a revista “Sight & Sound”, pertencente
ao British Film Institute elegeu o Top dos realizadores mundiais, e David Lean
apareceu em nono lugar. Entretanto, numa outra votação, para os “Top 100
British Films”, também organizada pelo British Film Institute, quatro dos seus
filmes apareciam entre os onze primeiros. David Lean é um dos autores
preferidos de cineastas como Steven Spielberg ou Stanley Kubrick. Recordado por
épicos como “The Bridge on the River Kwai” (1957), “Lawrence of Arabia” (1962),
“Doctor Zhivago” (1965), ou “A Passage to India” (1984), teve, no entanto,
outras obras absolutamente inesquecíveis como as adaptações de Charles Dickens,
“Great Expectations” (1946) e “Oliver Twist” (1948), ou a admirável colaboração
com Noel Coward nesse sublime drama, “Brief Encounter” (1945).
Filho de
Quakers, Francis William le Blount Lean e Helena Tangye, frequentou uma escola
dirigida por esta religião, a “Leighton Park School in Reading”. Mas passava
todo o tempo livre na cinema e, em 1927, resolveu empregar-se nos estúdios da
Gaumont, distribuindo chá e transportando bobines de filmes. Rápido passou a
montador e assistente de realização.
Montou dois
filmes de Gabriel Pascal, segundo peças de George Bernard Shaw, “Pygmalion”
(1938) e “Major Barbara” (1941), assim como obras de Powell & Pressburger,
“49th Parallel” (1941) e “One of Our Aircraft Is Missing” (1942), após o que
passou a dirigir as suas próprias obras. Na primeira, “In Which We Serve”
(1942), colaborou com Noël Coward, a que se seguiram “This Happy Breed” (1944),
“Blithe Spirit” (1945) e “Brief Encounter” (1945). A sua relação com o teatro
manteve-se: “The Sound Barrier” (1952) foi escrito pelo dramaturgo Terence
Rattigan e “Hobson's Choice” (1954) baseava-se numa peça de Harold Brighouse.
Depois do sucesso do drama romântico “Summertime” (1955), totalmente rodado em
Veneza, David Lean afirma-se nas superproduções épicas, demonstrando um cuidado
e uma sensibilidade invulgares neste tipo de películas, o que lhe granjeou
excelente reputação. Antes de falecer, em 1991, preparava-se para adaptar ao
cinema um romance de Joseph Conrad, “Nostromo”, prevendo um elenco de luxo,
Marlon Brando, Paul Scofield, Anthony Quinn, Peter O'Toole, Christopher
Lambert, Isabella Rossellini, Dennis Quaid, Alec Guinness e Georges Corraface
no protagonista. Trabalhou o guião com Christopher Hampton e Robert Bolt, mas a
sua morte impediu a concretização.
Filmografia
Como
realizador: 1942: In Which
We Serve (Sangue, Suor e Lágrimas); 1944: This Happy Breed (Esta Nobre Raça);
1945: Blithe Spirit (Uma Mulher do Outro Mundo); Brief Encounter (Breve
Encontro); 1946: Great Expectations (Grandes Esperanças); 1948: Oliver Twist
(As Aventuras de Oliver Twist); 1949: The Passionate Friends (Mais Forte Que o
Amor); 1950: Madeleine (Culpada ou Inocente?); 1952: The Sound Barrier; 1954:
Hobson's Choice; 1955: Summertime (Loucura em Veneza); 1957: The Bridge on the
River Kwai (A Ponte do Rio Kwai); 1962: Lawrence of Arabia (Lawrence da
Arábia); 1965: The Greatest Story Ever Told (A Maior História de Todos os
Tempos) (algumas cenas, não creditadas); 1965: Doctor Zhivago (Doutor Jivago);
1970: Ryan's Daughter (A Filha de Ryan); 1979: Lost and Found: The Story of
Cook's Anchor (TV); 1984: A Passage to India (Passagem para a Índia).
Como assistente de realização: Balaclava, de
Maurice Elvey, Milton Rosmer (1928), The Physician, de Georg Jacoby (1928),
Sailors Don't Care, de W.P. Kellino (1929), High Treason, de Maurice Elvey
(1929); Como montador: The Night
Porter, de Sewell Collins (1930).
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