quinta-feira, 27 de março de 2014

SESSÃO 13: 29 DE ABRIL DE 2014


O QUINTETO ERA DE CORDAS (1955)

São algumas as excelentes comédias produzidas pelos Ealing Studio em Inglaterra, em finais da década de 40 e inícios da de 50 do século passado. Algumas excelentíssimas, mas a comédia genial desse período é decididamente “O Quinteto era de Cordas”, uma indiscutível obra-prima que combina na perfeição o típico humor inglês com o humor negro, neste caso também muito tipicamente britânico.
Algumas décadas depois, os magníficos irmãos Cohen tentaram recuperar o clássico, numa nova versão encabeçada por Tom Hanks, mas esse terá sido um dos poucos falhanços desta dupla de irmãos. Na verdade, o remake não tem metade da graça do original.
Tudo parece perfeito, neste filme dirigido com subtileza por um inspiradíssimo Alexander Mackendrick, com base num belíssimo argumento escrito por William Rose (que ganharia o Oscar de Melhor Argumento do Ano), e com uma interpretação absolutamente fabulosa de Alec Guinness que aqui comanda um gang de que fazem parte Peter Sellers, Cecil Parker, Danny Green e Herbert Lom, que se instalam em casa de Mrs. Louisa Wilberforce, uma velhinha saborosamente interpretada por Katie Johnson. A fotografia é mágica (Otto Heller), a partitura musical é soberba (Tristram Cary), muito bem acolitada pela sonoplastia que, só por si, é um achado de humor.
“The Ladykillers” tem um arranque sem mácula, acompanhando as deambulações de uma velha senhora de sombrinha na mão, que passeia pelas ruas londrinas do seu bairro, e visita a esquadra de polícia da área, onde fala com o chefe e lhe coloca os seus problemas. Percebe-se que é acontecimento recorrente, pela forma como os agentes a olham e lhe respondem. Até o esquecimento do guarda-chuva é habitual. Mas, neste universo banal, repetitivo e aparentemente despreocupado, uma sombra paira, insinuando o perigo, a ameaça. A música sublinha devidamente o facto, levando a pensar numa influência de “Matou”, de Fritz Lang, mas agora numa versão satírica. Acompanhamos a velhinha no seu regresso a casa e seguimos igualmente a sombra que a persegue. Quando ela fecha a porta, a sombra toca à campainha. Vem responder a um anúncio que oferece o aluguer de quartos. O Professor Marcus acha o lugar encantador, é mesmo isso que ele precisa, ele que é professor de música e quer ensaiar com os seus amigos, um quinteto de cordas, amador, sem a perturbação de vizinhos. A velhinha adora música, clássica de preferência, acolhe o hóspede com a maior gentileza e, no dia seguinte, vê chegar o quinteto, com os seus instrumentos, subir escada acima onde se começa a ouvir uma delicada melodia (que roda num gira-discos), enquanto o gang prepara um assalto a uma carrinha que transporta muito dinheiro.


Não vale a pena continuar com a enumeração, que retiraria suspense à obra. Os intérpretes são notáveis, a estrutura narrativa é brilhantemente conduzida, o sublinhar sonoro, musical e de ruídos, é deliciosamente tenebroso, o ambiente criado em redor da velhinha e do seu acolhedor lar, muito british, é inesquecível, o guarda-roupa merece referência especial, pelo seu requinte e invenção (o traje de Alec Guiness com o seu descomunal cachecol ficará para a História), e, repetimos, “O Quinteto era de Cordas” é uma obra-prima.
Nestes casos, mais vale comentar pouco e saborear cada minuto da projecção.  


O QUINTETO ERA DE CORDAS
Título original: The Ladykillers
Realização: Alexander Mackendrick (Inglaterra, 1955); Argumento: William Rose, Jimmy O'Connor; Produção:  Seth Holt, Michael Balcon; Música:  Tristram Cary; Fotografia (cor):  Otto Heller;  Montagem:  Jack Harris          ; Direcção artística:  Jim Morahan; Guarda-roupa:  Anthony Mendleson; Maquilhagem:  Alex Garfath, Daphne Martin; Direcção de Produção:  Hal Mason, David Peers;  Assistentes de realização:  Tom Pevsner, Michael Birkett, John Meadows;  Departamento de arte: W. Simpson Robinson; Som:  Stephen Dalby; Efeitos especiais:  Sydney Pearson, Companhias de produção: The Rank Organisation, An Ealing Studios Michael Balcon; Intérpretes: Alec Guinness (Professor Marcus), Cecil Parker (Claude ou Major Courtney), Herbert Lom (Louis ou Mr. Harvey), Peter Sellers (Harry ou Mr. Robinson), Danny Green (One-Round ou Mr. Lawson), Jack Warner (o superintendente), Katie Johnson (a velha senhora), Philip Stainton      (o sargento), Frankie Howerd, Madge Brindley, Hélène Burls, Kenneth Connor, Michael Corcoran, Harold Goodwin, Fred Griffiths, Lucy Griffiths, Phoebe Hodgson, Vincent Holman, Anthony John, Stratford Johns, Evelyn Kerry, Sam Kydd, Edie Martin, Jack Melford, Robert Moore, Arthur Mullard, Ewan Roberts, George Roderick, John Rudling, Leonard Sharp, Peter Williams, Neil Wilson, etc. Duração: 91 minutos; Zon Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 22 de Novembro de 1956.

ALEC GUINNESS (1914–2000)
Alec Guinness de Cuffe nasceu a 2 de Abril de 1914 , em Marylebone, Londres, Inglaterra,  e faleceu a 5 de Agosto de 2000 , em Midhurst, Sussex, Inglaterra,  vítima de cancro.
Começou a sua carreira a trabalhar em publicidade. Estudou arte dramática no Fay Compton Studio of Dramatic Art e estreou-se como actor em 1936, no teatro Old Vic, em Londres. Em 1941, alistou-se na Marinha. Sempre preferiu o teatro ao cinema ou à televisão, mas foi no cinema que atingiu a sua glória internacional. Em 1946, roda, sob a direcção de David Lean, As Grandes Esperanças e, pouco depois, Oliver Twist. David Lean e Ronald Neame foram dois realizadores com quem trabalhou diversas vezes. Foi, e continua a ser, considerado um dos melhores actores ingleses de sempre, tendo estado sempre entre os três primeiros lugares, e várias vezes no primeiro.
Casado com Merula Salaman (1938-2000). Recebeu o título de Sir em reconhecimento pela sua contribuição para a arte do cinema e teatro. Em 1957, ganhou o Oscar de Melhor Actor, pelo seu trabalho em “A Ponte do Rio Kwai”. Foi nomeado por mais três vezes, como actor, e uma como argumentista, "The Horse's Mouth", uma adaptação do romance de Joyce Cary. Um dos actores mais premiados de sempre, com troféus nos BAFTAs, nos Globos de Ouro, no Festival de Berlim e no Festival de Veneza, entre diversos outros. Tem uma estrela no “Passeio da Fama”, em Hollywood Boulevard, no nº 1551 Vine Street.
Escreveu três volumes de memórias: 1985: “Blessings in Disguise”, 1997: “My Name Escapes Me: The Diary of a Retiring Actor” e 1999: “A Positively Final Appearance: A Journal 1996-98”.

Filmografia:
Como actor
1934: Evensong (Canção de Sempre), de Victor Saville (não creditado); 1946: Great Expectations (Grandes Esperanças), de David Lean; 1948: Oliver Twist (As  Aventuras de Oliver Twist), de David Lean; 1949: Kind Hearts and Coronets (Oito Vidas por um Título), de Robert Hamer; A Run for Your Money, de Charles Frend; 1950: Last Holiday, de Henry Cass; The Mudlark (A Rainha e o Vagabundo), de Jean Negulesco; 1951: The Lavender Hill Mob (Roubei Um Milhão), de Charles Crichton; The Man in the White Suit (O Homem do Fato Claro), de Alexander Mackendrick; 1952: The Card (Um Homem de Talento), de Arnold Bennett; 1953: The Square Mile (curta-metragem) (narrador); Malta Story (A Ilha Heróica), de Brian Desmond Hurst; The Captain's Paradise (O Paraíso do Capitão), de Anthony Kimmins; 1954: The Stratford Adventure), de Morten Parker; Father Brown (O Padre Brown Detective), de Robert Hamer; 1955: Baker's Dozen (TV); 1955: To Paris with Love (Amor à Inglesa... em Paris), de Robert Hamer; Rowlandson's England, de John Hawksworth (narrador); The Prisoner (O Prisioneiro), de Peter Glenville; The Ladykillers (O Quinteto Era de Cordas), de Alexander Mackendrick; 1956: The Swan (O Cisne), de Charles Vidor; 1957: The Bridge on the River Kwai (A Ponte do Rio Kwai), de David Lean; Barnacle Bill, de Charles Frend; 1958: The Horse's Mouth, de Ronald Neame; 1959: The Scapegoat, de Robert Hamer; Startime (TV) episódio The Wicked Scheme of Jebal Deeks; 1960: Tunes of Glory (Uma Vez, Um Herói), de Ronald Neame; Our Man in Havana, de Carol Reed; 1961: A Majority of One, de Mervyn LeRoy; 1962: Lawrence of Arabia (Lawrence da Arábia), de David Lean; H.M.S. Defiant (Revolta no Defiant), de Lewis Gilbert; 1964: The Fall of the Roman Empire (A Queda do Império Romano), de Anthony Mann; 1965: Situation Hopeless... but not Serious (Situação Desesperada... mas não Grave), de Gottfried Reinhardt; 1965: Pasternak (curta-metragem); Doctor Zhivago (Doutor Jivago), de David Lean; 1966: The Quiller Memorandum (O Processo Quiller), de Michael Anderson; Hotel Paradiso (Hotel Paraíso), de Peter Glenville; 1967: The Comedians (Os Comediantes), de Peter Glenville; The Comedians in Africa(curta-metragem); 1969: Cromwell (Cromwell), de Ken Hughes; ITV Saturday Night Theatre (TV) episódio Twelfth Night; 1970: Scrooge (Muito obrigado, Sr, Scrooge),  de Ronald Neame; 1973: Fratello Sole, Sorella Luna ou Brother Sun, Sister Moon (S. Francisco de Assis), de Franco Zeffirelli; Hitler: the Last Ten Days (Hitler: Os Últimos Dez Dias), de Ennio De Concini; 1974: The Gift of Friendship (TV); 1976: Murder by Death (Um Cadáver de Sobremesa), de Robert Moore; Caesar and Cleopatra, de James Cellan Jones (TV); 1977: To See Such Fun, de Jon Scoffield (documentário); Star Wars Episode IV: A New Hope (Star Wars: Episódio IV - Uma Nova Esperança), de George Lucas; 1979: Tinker, Tailor, Soldier, Spy (TV Mini-série) sete episódios; 1980: Raise the Titanic (A Guerra dos Abismos), de Jerry Jameson; Star Wars Episode V: The Empire Strikes Back (Star Wars: O Império Contra-Ataca), de Irvin Kershner; The Morecambe & Wise Show (TV) episódio Christmas Show; 1981: Little Lord Fontleroy (O Pequeno Lord), de Jack Gold (TV); 1982: Smiley's People (TV Mini-série) seis episódios; 1983: Star Wars Episode VI: Return of the Jedi (Star Wars: O Regresso de Jedi), de Richard Marquand; Lovesick, de Marshall Brickman; 1984: A Passage to India (Passagem Para a Índia), de David Lean; Edwin (TV); 1985: Great Performances (TV Série) episódio Monsignor Quixote; 1987: A Handful of Dust (Uma Mão Cheia de Pó), de Charles Sturridge; 1988: Little Dorrit, de Christine Edzar; 1991: Kafka (Kafka), de Steven Soderbergh; 1992: Performance (TV Série) episódio Tales from Hollywood; 1993: Screen One (TV Série) episódio A Foreign Field, de Charles Sturridge; 1994: Mute Witness (Não Falarás!), de Anthony Waller; 1996: Eskimo Day (TV).

EALING STUDIOS
“Ealing Studios” é uma produtora de filmes para cinema e de entretenimento diverso para televisão. Tem uma longa história, sendo presentemente, o mais antigo estúdio de cinema a operar no mundo. Nasceu em 1902, no local chamado Ealing Green, em Londres Oeste. Will Barker fundou aí uma produtora chamada “White Lodge”. Em 1931, o produtor teatral Basil Dean, já no sonoro, funda nesse espaço a Associated Talking Pictures, que se mantém em funcionamento até 1938, quando entra em declínio. Michael Balcon, vindo da MGM, passa então a controlar os destinos da produtora, insufla-lhe uma nova vida, com outros colaboradores e actores, refrescando o ambiente, tornando-a numa casa produtora lendária, sobretudo através das suas comédias, as “Ealing comedies”, que se instituíram rapidamente clássicos, a partir do fim da II Guerra Mundial: “Kind Hearts and Coronets” (1949), “Passport to Pimlico” (1949), “The Lavender Hill Mob” (1951), e “The Ladykillers” (1955). Os filmes da companhia passam então a ser distribuídos sob a sigla da “Rank Organisation”.
Durante este tempo, mas sobretudo nos anos 30 e 40, os Ealing Studios não só criam os seus actores de comédia típicos, como Gracie Fields, George Formby, Stanley Holloway ou Will Hay, mais tarde Alec Guiness, como se notalibilizam ainda por outro tipo de filmes, como os documentários realistas durante a II Guerra Mundial, com títulos que se recordam “Went the Day Well?” (1942), “The Foreman Went to France” (1942), “Undercover” (1943), “San Demetrio London” (1943), entre outros. Ainda em 1945, produz um thriller em episódios que deixou marca: “Dead of Night”.
Depois, durante quarenta anos, a BBC, entre 1955 e 1995, alugou o espaço e rodou ainda grande parte do seu material televisivo, telefilmes, séries, programas diversos. Chegou a possuir nesse espaço mais de 50 salas de montagem. A partir de 2000, a Ealing Studios passou sobretudo a casa distribuidora, mas algumas obras foram ainda rodadas nesses estúdios, como “The Importance of Being Earnest” (2002) ou “Shaun Of The Dead” (2004). Uma escola de cinema também se serve destes estúdios, a The Met Film School London.  A morada é: 31, Grange Road, Ealing, Londres.

Os principais filmes dos Ealing Studios: “Hue and Cry” (1947), “Whisky Galore!” (1949), “Passport to Pimlico” (1949), “Kind Hearts and Coronets” (1949), “The Lavender Hill Mob” (1951), “The Man in the White Suit” (1951), “The Titfield Thunderbolt” (1953), “The Cruel Sea” (1953), “The Ladykillers” (1955), “Barnacle Bill” (1956). 

SESSÃO 12 ( dupla): 22 DE ABRIL DE 2014


ROUBEI UM MILHÃO (1951)

Nas primeiras imagens de “Roubei um Milhão” encontramos dois ingleses sentados à mesa de um luxuoso restaurante tropical (saberemos depois que se tratada cidade do Rio de Janeiro), enquanto um deles vai distribuindo notas e conta ao outro como se tornou milionário. Realmente só um milionário muito desprendido, lança notas à toa aos empregados, a organizações de senhoras da alta roda que lutam contra as revoluções, a obras sociais, ou mesmo a jovens meninas muito bonitas e cheias de futuro (ou não fosse essa Chiquita que surge nos momentos iniciais de “Roubei um Milhão” um dos primeiros papeis no cinema de Audrey Hepburn). Holland (Alec Guiness) é o narrador, de sorriso tímido e esbanjador de notas. Conta como antigamente era um honesto e solicito supervisor de banco, encarregue de acompanhar as barras de ouro que saiam da fundição e iam ser arrecadadas nos cofres do banco. É visto por todos como um funcionário escrupuloso, metódico, rigoroso, maníaco nos pormenores, motivo mesmo de alguma chacota dos colegas. Alec Guinness é simplesmente brilhante na forma como encarna essa personagem cinzenta, acanhada, algo acabrunhada mesmo, que passa pela vida sem dar por ela. Dir-se-ia que assim era. Mas Holland tem sonhos secretos e um deles é ser milionário e tornar seus aqueles lingotes de ouro que diariamente transporta numa carrinha que, um dia, quem sabe?, pode ser assaltada por um gang de que ele seja o mentor. O “The Lavender Hill Mob”, o gang de Lavender Hill, nome de uma colina de Londres onde se reúnem os elementos escolhidos por Holland para levar a cabo tão extraordinária façanha.
É assim, no Brasil, em jeito de conto de fadas, que começa esta comédia, dirigida por um sólido realizador inglês deste período, Charles Crichton, que realiza para os Earling Studios outro clássico do humor inglês. Partindo desta narrativa, inicia-se um longo flashback que irá contar todas as peripécias deste roubo de um banco levado a cabo por um estranho grupo de zé ninguéns que assaltam a carrinha, desciam as barras de ouro, as fundem, delas fazem pequenas estatuetas de torres Eiffel que, depois, enviam para Paris como souvenirs, com a indicação de que aquelas duas caixas não se destinam a ser colocadas à venda. Mas uma excursão de jovens estudantes inglesas empolgadas com as recordações, acabam por comprar seis dessas imagens, e criar a histeria junto do grupo de assaltantes.


Como em quase todas as comédias dos Earling Studios, os heróis são uns pobres de Cristo que, aparentemente, não têm onde cair mortos, mas que armazenaram dentro de si um capital de vingança ou de sede de justiça que os leva a ultrapassar uma série de perigos. A verdade é que a falta de experiência e de jeito parece tornar impossível o empreendimento, mas a sorte está do seu lado. Enfim, quase até ao fim, porque em todas estas comédias mais ou menos negras a justiça acaba por vencer, mas de uma forma algo capciosa. O politicamente correcto é restabelecido, mas o espectador fica com algumas dúvidas sobre a sua eficácia. Se a sorte favorece os meliantes, é igualmente a sorte que restabelece a justiça, o que deixa tudo em águas turvas. Isso mesmo nos dizem obras como “Whisky Galore!” (1949), “Passport to Pimlico” (1949), “Kind Hearts and Coronets” (1949), “The Lavender Hill Mob” (1951), “The Man in the White Suit” (1951), ou “The Ladykillers”, onde, de uma forma ou de outra, este esquema se repete.
De resto, o ambiente social que estes títulos nos oferecem da Inglaterra de após-guerra é muito interessante e mesmo perturbador. Há um alternar de retratos de extractos sociais diversos muito curioso. Entre os aristocratas de “Kind Hearts and Coronets”, os banqueiros de “The Lavender Hill Mob” ou os donos de fábricas de “The Man in the White Suit” e os seus opositores, herdeiros excluídos ou fieis servidores revoltados, deixa-se entrever uma discreta e surda luta de interesses que só na aparência se resolve. Este humor amável, deliciosamente elegante e “distinto” acaba por esconder muita raiva e desencanto. Uma das marcas dos Earling Studios, onde o homem comum sonha com um futuro radioso que chega a tocar, mas que rapidamente se esboroa. Os filmes não são resolutamente obras revolucionarias de sangue na guelra, mas sim melancólicas meditações sobre o destino cinzento de personagens que todavia conseguem tocar o céu e viver momentos de profunda felicidade. Quase sempre através de meios não muito lícitos, segundo as regras vigentes, é verdade. Mas os protagonistas destas aventuras marginais parecem aceitar sem grande mágoa o destino que os espera no final das suas aventuras/desventuras. O que os leva a intervir é o desejo de uns momentos de felicidade, a possibilidade de concretizar um sonho, de ir mais alem do que o dia a dia sem horizontes do seu quotidiano. Os patrões de Holland definem-no assim: “A sua única virtude é a honestidade”. Suprema ironia, portanto.


O argumento de “Roubei um Milhão”, da autoria de T.E.B. Clarke, acabaria por ganhar o Oscar de Melhor Argumento do ano, e o Alec Guiness esteve ainda nomeado para Melhor Actor. Muitas outras recompensas lhe foram devidas. Foi considerado o Melhor Filme inglês pelos BAFTAS, Charles Crichton foi nomeado Melhor Realizador pela Guida dos Realizadores dos EUA, Alec Guiness ganhou o prémio de Melhor Actor Estrangeiro do Sindicato dos Jornalistas Italianos e, no Festival de Veneza, T.E.B. Clarke foi considerado o Melhor Argumentista. Deve dizer-se porem que Stanley Holloway, na figura de Pendlebury, companheiro de Holland na congeminação deste golpe, é igualmente notável.

ROUBEI UM MILHÃO
Título original: The Lavender Hill Mob
Realização: Charles Crichton (Inglaterra, 1951); Argumento: T.E.B. Clarke; Produção: Michael Balcon, Michael Truman; Música: Georges Auric; Fotografia (p/b): Douglas Slocombe; Montagem: Seth Holt; Casting: Margaret Harper Nelson; Direcção artística: William Kellner; Guarda-roupa: Anthony Mendleson; Maquilhagem: Ernest Taylor, Harry Wilton, Barbara Barnard; Direcção de Produção: Slim Hand, Hal Mason; Assistentes de realização: Norman Priggen, John Meadows, Jim O'Connolly; Departamento de arte: Andrew Low, George Speller, Bob Tull; Som:  Stephen Dalby; Efeitos especiais: Sydney Pearson; Efeitos visuais: Geoffrey Dickinson, Bryan Langley; Companhias de produção: J. Arthur Rank Organisation, Ealing Studios; Intérpretes: Alec Guinness (Holland), Stanley Holloway (Pendlebury), Sidney James (Lackery), Alfie Bass (Shorty), Marjorie Fielding (Mrs. Chalk), Edie Martin (Miss Evesham), John Salew (Parkin), Ronald Adam (Turner), Arthur Hambling (Wallis), Gibb McLaughlin (Godwin), John Gregson, Clive Morton, Sydney Tafler, Marie Burke, Audrey Hepburn (Chiquita), William Fox, Michael Trubshawe, Ann Hefferman, Jacques B. Brunius, Eugene Deckers, Paul Demel, Andreas Malandrinos, Cyril Chamberlain, Tony Quinn, Moultrie Kelsall, Christopher Hewett, Meredith Edwards, Patrick Barr, David Davies, Robert Shaw, John Warwick, etc.  Duração: 81 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 6 de Janeiro de 1952.

CHARLES CRICHTON 
(1910 –1999)
Nasceu a 6 de Agosto de 1910, em Wallasey, Cheshire, Inglaterra, e viria a falecer a 14 de Setembro de 1999, em  South Kensington, Inglaterra. Foi montador, realizador, argumentista, produtor, de cinema e televisão, durante mais de 40 anos, durante os quais construiu uma sólida carreira na industria cinematográfica britânica. trabalhou para produtores como Alexander Korda (em obras como “Sanders of the River”, “Things To Come”, “Elephant Boy”, ou “The Thief of Bagdad”). Iniciou-se como realizador com uma curta-metragem, em 1941, “The Young Veterans”. Passou para os Ealing Studios em 1944 onde se estreia na longa-metragem: “For Those in Peril”. Assinou dezenas de obras, no cinema (onde alguns clássicos como “Roubei um Milhão”, e na televisão. A pedido de John Cleese, Crichton aceitou regressar ao cinema em 1888, para dirigir a comédia “Um Peixe Chamado Wanda”, que se tornaria num dos maiores êxitos do cinema inglês dessa época. Foi o seu último filme. Morreu com 89 anos, em Londres, em 1999.

Filmografia:
Como realizador

1941: The Young Veterans (curta-metragem); 1944: For Those in Peril; 1945: Painted Boats; 1945: Dead of Night (A Dança da Morte) (episódio "Golfing Story"); 1947: Hue and Cry (Grito de Indignação); 1948: Against the Wind; Another Shore; 1949: Train of Events (Quatro Sem Passaporte) (episódio "The Composer"); 1950: Dance Hall; 1951: The Lavender Hill Mob (Roubei Um Milhão); 1952: Hunted (A Alma de um Criminoso); 1953: The Titfield Thunderbolt; 1954: The Love Lottery (A Lotaria do Amor); 1954: The Divided Heart (Dêem-me o meu Filho); 1957: The Man in the Sky; ITV Play of the Week (Série de TV) (1 episódio); 1958: Law and Disorder; 1959: Floods of Fear; The Battle of the Sexes; 1960: The Boy Who Stole a Million; 1962-1963: Man of the World (Série de TV) (3 episódios) 1963: The Human Jungle (Série de TV) (1 episódio); 1964: The Third Secret; 1962 O Prisioneiro de Alcatraz (não creditado); 1964: Danger Man (Série de TV) (2 episódios)); 1965-1969: The Avengers (Os Vingadores) (Série de TV) (5 episódios); 1965: He Who Rides a Tiger; 1967: L'Homme à la valise (Man in a Suitcase) (série TV); 1967-1968: Man in a Suitcase (Série de TV) (6 episódios); 1968: Strange Report (Série de TV) (5 episódios); 1969: Light Entertainment Killers (TV); 1970: Here Come the Double Deckers! (Série de TV) (1 episódio); 1971; Shirley's World (Série de TV) (1 episódio); 1973-1974:  The Protectors (Série de TV) (5 episódios); 1972-1974: The Adventures of Black Beauty (Série de TV) (15 episódios); 1975: NBC Special Treat (Série de TV) (1 episódio); 1976: Rentaghost (Série de TV) (1 episódio); The Day After Tomorrow (TV); 1975-1976: Space: 1999 (Espaço: 1999) (Série de TV) (14 episódios); 1976: Into Infinity (TV); 1976: Cosmic Princess (TV); 1976: Alien Attack (Ataque Alienígena) (TV); 1977 The Unorganized Manager, Part One: Damnation (documentário vídeo curta-metragem); The Unorganized Manager, Part Two: Salvation (documentário vídeo curta-metragem); The Unorganized Manager, Part Four: Revelations (documentário vídeo curta-metragem); The Unorganized Manager, Part Three: Lamentations (documentário vídeo curta-metragem); 1977: The Professionals) (série de TV); 1979: Dick Turpin (série de TV) (10 episódios); 1981: Smuggler (série de TV) (3 episódios); 1982: Princesa Cosmica (TV); 1983: Perishing Solicitors (TV); 1984: More Bloody Meetings (documentário vídeo); 1988: A Fish Called Wanda (Um Peixe Chamado Wanda).

SESSÃO 12 ( dupla): 22 DE ABRIL DE 2014


O HOMEM DO FATO CLARO (1951)

Alexander Mackendrick vinha de uma época dedicada ao documentarismo e ao filme de propaganda bélica de que se ocupou durante quase toda a II Guerra Mundial. Mas, acabada a guerra, em 1946,  integra a equipa de cineastas dos Ealing Studios, onde  durante nove anos realiza alguns dos grandes clássicos da comédia inglesa deste período, como “Whisky Galore!” (1949), “The Man in the White Suit” (1951) ou  “The Ladykillers” (1955). São obras de um humor muito especial, que prolonga a herança de “Oito Vidas por um Título”, conjugando uma ironia discreta, mas ácida, um humor negro por vezes, mas sempre com uma elegância de estilo e uma posse indubitavelmente britânica. Raras vezes uma cinematografia consegue reunir em tão curto espaço de tempo, um tal conjunto de obras que reflectem de forma tão sábia e nítida o modo de ser de um povo, sobretudo na sua vertente humorística.
O filme parte de uma peça teatral da autoria de Roger MacDougall que conheceu algum sucesso um palcos londrinos. Roger MacDougall era primo e amigo de  Alexander Mackendrick e este resolveu adaptar a obra a cinema, com a colaboração do dramaturgo e de John Dighton. Não era a primeira vez que MacDougall e Mackendrick trabalhavam juntos em argumentos para cinema, que outros dirigiam. Desta feita seria Alexander Mackendrick a realizar este projecto nas condições previstas pelos estúdios onde trabalhavam e na época em que o mesmo foi concretizado, pouco depois de terminada a guerra e com o país ainda em reconstrução. Produção barata, filmada a preto e branco, munida de excelentes actores, é verdade, que todavia não deveriam receber muito de cachet, apesar de muitos deles serem primeiras figuras do teatro e do cinema ingleses.


“The Man in The White Suit” organiza-se tendo como base um argumento muito inteligente, original, astuto na análise das situações, com uma sábia utilização dos elementos puramente cinematográficos para fazer avançar a história e simultaneamente criar uma densidade de intenções críticas assinalável.
Sidney Stratton (Alec Guinness), empregado numa fábrica de têxteis dirigida por Alan Birnley (Cecil Parker), é um entusiasta por descobertas cientificas e químicas em particular. Aproveitando o relativo descontrolo da fábrica, conseguira ganhar um cantinho para as suas experiências, instalando alambiques, serpentinas e outros copos e vasos com líquidos em ebulição, enquanto vai arrumando os armazéns. Um dia, porém, Alan Birnley, a sua filha Daphne Birnley (Joan Greenwood) e Michael Corland (Michael Gough), o pretendente à sua mão e, sobretudo, à sua riqueza, visitam a fábrica, descobrem ocasionalmente o discreto reduto do inventor, que não dá provas da sua genialidade, e é despedido. De desgraça em desgraça, mas com uma fé inabalável numa descoberta revolucionária, Sidney acabará mesmo por inventar o tecido nunca visto nem sequer imaginado: algo que não se rompe, que não se estraga, que não se suja. Um tecido para a eternidade, no fundo. Uma invenção que pode retirar a Humanidade da necessidade de comprar novos fatos. Algo de verdadeiramente espectacular, não fora um pequeno pormenor: as fábricas fechariam, os patrões deixariam de ganhar, os operários perderiam os empregos, e instalar-se-ia o caos na economia. Logo, é necessário perseguir e destruir o inventor de semelhante ameaça para capitalistas e operários, que unidos se lançam na perseguição desse “homem do fato claro”. Patronato e sindicatos de acordo, quando a ameaça é conjunta. Capital e trabalho de mãos dadas.


Com uma serenidade narrativa muito britânica, e um humor deliciosamente subtil, mas truculento, Mackendrick conduz a sua obra com uma displicente ironia, criticando métodos e processos de uma sociedade capitalista assente sobre o lucro e na vertigem do consumo, para assegurar que a máquina continue a laborar.
Não são muitos os meios de que o realizador dispõe mas há dois ou três essenciais para o bom desempenho da obra. De um lado a interpretação, superiormente dominada por um Alec Guiness magnifico, numa composição entre o ingénuo perplexo e o persistente cabotino. Depois a banda sonora que domina toda a película, com o efeito causado pelas maquinetas do inventor em plena laboração (esse inolvidável "guggle glub guggle") e que marca o ritmo da obra, injectando-lhe um uma nevrótica cadência.  Haverá ainda que referir a excelente fotografa, de um preto e branco onde, nas sequências finais, sobressai o fato imaculado de Sidney, que parece adquirir uma estranha fosforescência.
“O Homem do Fato Claro” é na verdade uma das grandes comédias do humor inglês da década de 40 do século XX e um dos títulos que deu fama à sua fábrica de origem: os Earling Studios.

O HOMEM DO FATO CLARO
Título original: The Man in the White Suit
Realização: Alexander Mackendrick (Inglaterra, 1951); Argumento: John Dighton, Alexander Mackendrick, Roger MacDougall, segundo peça teatral deste último; Produção:  Michael Balcon, Sidney Cole; Música:  Benjamin Frankel; Fotografia (p/b): Douglas Slocombe; Montagem: Bernard Gribble; Casting: Margaret Harper Nelson; Direcção artística:  Jim Morahan; Guarda-roupa:  Anthony Mendleson; Maquilhagem:  Barbara Barnard, Harry Frampton, Ernest Taylor; Direcção de Produção: Hal Mason, L.C. Rudkin; Assistentes de realização: David Peers, John Assig, Terry Bishop, Jim O'Connolly; Departamento de arte: Norman Dorme, Andrew Low; Som:  Stephen Dalby, Mary Habberfield; Efeitos especiais: Sydney Pearson, Efeitos visuais: Geoffrey Dickinson; Companhias de produção: J. Arthur Rank Organisation, An Ealing Studios Production; Intérpretes: Alec Guinness (Sidney Stratton), Joan Greenwood (Daphne Birnley), Cecil Parker (Alan Birnley), Michael Gough (Michael Corland), Ernest Thesiger (Sir John Kierlaw), Howard Marion-Crawford (Cranford), Henry Mollison (Hoskins), Vida Hope (Bertha), Patric Doona (Frank), Duncan Lamont, Harold Goodwin, Colin Gordon, Joan Harben, Arthur Howard, Roddy Hughes, Stuart Latham, Miles Malleson, Edie Martin, Mandy Miller, Charlotte Mitchell, Olaf Olsen, Desmond Roberts, Ewan Roberts, John Rudling, Charles Saynor, Russell Waters, Brian Worth, George Benson, Frank Atkinson, Charles Cullum, F.B.J. Sharp, Scott Harold, Jack Howarth, Jack McNaughton, Judith Furse, Billy Russell, David Boyd, Alan Haines, Arthur Mullard, Carol Wolveridge, etc. Duração: 85 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 22 de Maio de 1952.

ALEXANDER MACKENDRICK 
(1912 – 1993)
Nasceu a 8 de Setembro de 1912, em Boston, Massachusetts, EUA, e viria a falecer a 22 de Dezembro de 1993, com 81 anos. Filho Francis Robert Mackendrick, engenheiro civil que trabalhava na construção naval, e de Martha Mackendrick, originários de Glasgow, na Escócia, e que haviam emigrado para os EUA em 1911. Quando tinha apenas seis anos, o pai morreu, vítima de “gripe espanhola”, a mãe foi obrigada a trabalhar como costureira, e enviou o filho de volta à Escócia, para casa do avô paterno. Alexander Mackendrick, que teve uma infância difícil, nunca mais ouviu falar da mãe. Estudou na escola de Hillhead de 1919 a 1926, e depois arte na Glasgow School of Art. No inicio dos anos 30, Mackendrick parte para Londres, onde começou a trabalhar numa agencia de publicidade,  J. Walter Thompson. Entre 1936 e 1938 escreve alguns argumentos para filmes publicitários. Em 1937, escreve o argumento de “Midnight Menace”, como o seu primo e melhor amigo Roger MacDougall.
Durante a II Guerra Mundial, Mackendrick esteve ao serviço do Ministério da Informação para realizar filmes de propaganda pró-britânica. Em 1942, instalado na Argélia, onde desempenhava importantes funções da Psychological Warfare Division, roda filmes de actualidades, documentários e dá luz verde para Rossellini filmar “Roma, Cidade Aberta”. Acabada a guerra, ele e o primo aparecem na Merlin Productions, rodando documentários, mas, em 1946,  junta-se aos Ealing Studios, onde  durante nove anos realiza grande parte da sua obra inglesa, com filmes como “Whisky Galore!” (1949), “The Man in the White Suit” (1951) ou  “The Ladykillers” (1955), todos eles clássicos da comédia inglesa.
Ainda em 1955, Mackendrick troca a Inglaterra pelos EUA. O resto da sua vida será passada entre Londres e Los Angeles, desenvolvendo uma longa actividade como argumentista, para lá de realizador. “Sweet Smell of Success” (1957) é a sua obra de estreia nos EUA, uma produção Hecht-Hill-Lancaster que colheu críticas muito favoráveis e os favores do público. Regressa depois a Inglaterra para rodar para os mesmos produtores “The Devil’s Disciple”, mas desencontros vários levaram a que o realizador fosse substituído por Guy Hamilton que assina finalmente a obra. Desencorajado, passa algum tempo a trabalhar para publicidade e regressa ao cinema com “Sammy Going South” (1963), o belíssimo “A High Wind in Jamaica” (1965) ou “Don't Make Waves” (1967).
De volta aos EUA em 1969, torna-se professor no California Institute of the Arts, até 1993, quando uma pneumonia fatal o atingiu. Os restos mortais repousam no Memorial Park Cemetery de Westwood Village.

Filmografia
Como realizador:

1949: Whisky Galore!; 1951: The Man in the White Suit (O Homem do Fato Claro); 1952: Mandy (Mandy, a Surda Muda); 1954: The Maggie (Loucuras de Milionário); 1955: The Ladykillers (O Quinteto era de Cordas); 1957: Sweet Smell of Success (Mentira Maldita); 1959: The Devil's Disciple (O Aprendiz do Diabo), assinado por Guy Hamilton, Mackendrick não creditado; 1961: The Guns of Navarone (Os Canhões de Navarone), assinado por Jack Lee Thompson, Mackendrick não creditado; 1963: Sammy Going South (Só Contra o Mundo); 1964: The Defenders (série de TV) (1 episódio “The Hidden Fury”); 1965: A High Wind in Jamaica (Tempestade na Jamaica); 1967: Oh Dad, Poor Dad, Mama's Hung You in the Closet and I'm Feeling So Sad, assinado por  Richard Quine, Mackendrick não creditado; 1967: Don't Make Waves (Não Faças Ondas).

SESSÃO 11: 15 DE ABRIL DE 2014

OS SAPATOS VERMELHOS (1948)

Quando Michael Powell e Emeric Pressburge criaram  em 1942 a sua produtora The Archers, iniciava-se uma colaboração a todos os níveis notável. Os filmes apareciam com a designação de terem sido “escritos, produzidos e realizados por Michael Powell e Emeric Pressburger” e esta comunhão de actividades  não escondia o facto de Pressburger ser predominantemente o argumentista e produtor e Power o realizador. Desta conjugação de talentos nasceram obras absolutamente invulgares, como “A Vida do Coronel Blimp” (1943), “Caso de Vida ou Morte” (1945), “Quando os Sinos Dobram” (1947), “Os Sapatos Vermelhos” (1948) ou “Os Contos de Hoffmann” (1951). O que melhor pode definir o trabalho destes dois génios do cinema inglês é um discreto afastamento do realismo e uma aproximação de uma estética surrealista, uma utilização invulgar do Technicolor, que atinge o seu apogeu em “Os Sapatos Vermelhos”, e a originalidade de escrita e de concepção plástica dos seus filmes, onde é sempre sensível um lirismo forte.
“The Red Shoes” parte de um conto, uma história de fadas, do dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), publicado em 1845. É a partir deste autor que se encena o bailado “Os Sapatos Vermelhos” que nos fala de uma jovem órfã a quem a mãe adoptiva oferece um par de sapatos vermelhos que passam a exercer um fascínio evidente sobre a menina que se recusa a tirá-los e dança até à exaustão, dado que os sapatos parecem ter vida própria e uma exigência total. Um anjo anuncia então à rapariga que ela irá dançar até sucumbir, o que se manifesta como um castigo divino, dado que o vermelho dos sapatos é tido como ostentação, sensualidade, pacto com o mal, e ainda por cima a jovem se encontra em período de crisma, impedindo, portanto, essa “comunhão com Deus”. Levada pela sua frivolidade, irá dançar até à morte. Este o esquema do bailado que está no cerne do filme de Michael Powell e Emeric Pressburge.


Mas o filme possui uma história paralela que corre em simultâneo com o bailado. Boris Lermontov é o proprietário e produtor de uma importante companhia de bailado. Solitário, exigente, implacável, sedutor nesse distanciamento que impõe, Lermontov põe a arte e o bailado acima de tudo. Para ele não há vida privada, mas dádiva completa à arte. No caso da dança, esta imposição parece inegociável. Um dia descobre dois novos talentos, Victoria Page, uma bailarina desconhecida, onde ele surpreende um talento imenso, e Julian Craster, um jovem compositor. Ambos são contratados, quase ao mesmo tempo que é dispensada a estrela da companhia Irina Boronskaïa, com o pretexto deque é impossível manter-se bailarina ao mais alto nível e estar casada. Lermontov pede a Craster que crie uma partitura para o bailado novo, “Os Sapatos Vermelhos”, que será dançado por Victoria Page. A estreia é triunfal, tudo parece correr pelo melhor, tanto mais que o amor invade a companhia e Craster e Victoria se apaixonam e resolvem anunciar o seu casamento. Mas o amor aqui não é bem vindo, e Lermontov, fiel ao seu principio, despede director de orquestra e prima bailarina. Quando mais tarde os tenta reunir de novo, impõe o dilema à bailarina: ou o amor ou a dança e o final do bailado irá precipitar-se em repetição no final do filme.
Esta estrutura dramática permite criar um interessante triângulo tendo Victoria como vértice essencial. De um lado o produtor Lermontov, do outro o compositor Craster, um colocando a arte acima dos sentimentos pessoais, o outro tentando conciliar o amor e a arte. Esta luta interna que atravessa o corpo e os sentimentos de Victoria acabará por a levar à auto destruição. Mas o filme é muito mais ambíguo do que poderá parecer a uma simples leitura mais superficial. Será que Lermontov age como age movido apenas pelo interesse pela pureza da arte, ou será que por detrás dessa razão não estarão sobretudo ciúmes? Todo o comportamento de Lermontov desde o momento que descobre Victoria Page numa festa particular parece indicar um deslumbramento emocional. Ou será apenas a descoberta do talento? Ou a reunião de ambos? Vamos mais longe: será que Lermontov tem consciência dessa sua secreta paixão? Ou será que Lermontov vive obcecado apenas pela beleza dessa arte pura que é o bailado e que exige entrega total, uma entrega de tal forma total que ele próprio é o exemplo desse ideal, ele próprio “desiste” de Victoria para que a arte se cumpra, e por isso mesmo não admite que outro não compreenda essa renúncia em nome de um prazer (felicidade) individual?


Há muito de Pigmaleão na figura de Lermontov, assim como se poderá falar de Fausto. Mais ainda, Lermontov é nome de poeta russo. Uma das suas obras mais conhecidas, “O Demónio”, fala de um espírito maligno que se apodera da alma de uma jovem e a leva a abandonar o seu noivo. Haverá relação consciente?
O filme adquire uma progressão dramática muito interessante, iniciando-se como uma história que se aproxima do musical, com a descrição das personagens e dos locais e situações. Especial atenção é dada ao trabalho especifico dos bailarinos, das repetições, do esforço diário para a perfeição do gesto e da harmonia dos movimentos, para o domínio do corpo. Depois a estrutura vai lentamente moldando-se ao ballet que se ensaia, progressivamente se vai descortinando a colagem da personagem de Victoria Page e da protagonista do bailiado, com os sapatos vermelhos a funcionarem como elemento de transição e identificação. Durante a longa sequência do bailado a fusão é total e a partir daí tudo se altera. Victoria assumiu um destino, o seu destino. Ela será para sempre a protagonista de “Os Sapatos Vermelhos” e de tal forma o será que, mesmo na sua ausência, será a sua interpretação a dar forma à derradeira representação.
Duas interpretações fulgurantes colocam a obra no seu pedestal definitivo. Anton Walbrook (em Boris Lermontov ) e Moira Shearer (em Victoria Page) compõem personagens que para sempre se lhes colaram à pele. Ao lado destes, há ainda a referir Ludmilla Tchérina, Marius Goring, Léonide Massine, Robert Helpmann, Albert Bassermann, entre outros. Mas nada ficaria perfeito nesta obra-prima indiscutível, não fora o exuberante e espatodo tratamento cromático da fotografia de Jack Cardiff, a magnifica partitura musical de Brian Easdale, a excelente montagem de Reginald Mills, e toda a concepção plástica e cénica não só do bailado, como de todo o filme.



OS SAPATOS VERMELHOS
Título original: The Red Shoes
Realização: Michael Powell, Emeric Pressburger (Inglaterra, 1948); Argumento: Emeric Pressburger, Keith Winter, Michael Powell, segundo conto de fadas de Hans Christian Andersen; Produção: Michael Powell, Emeric Pressburger; Música: Brian Easdale; Fotografia (cor): Jack Cardiff; Montagem:  Reginald Mills; Design de produção:  Hein Heckroth; Direcção artística:  Arthur Lawson; Guarda-roupa:  Hein Heckroth; Maquilhagem:  George Blackler, Eric Carter, Ernest Gasser; Assistentes de realização: Sydney Streeter, J.M. Gibson, Laurie Knight, Kenneth K. Rick; Departamento de arte: Alfred Roberts, Bernard Goodwin, G. Heavens, Don Picton, V. Shaw, V.B. Wilkins, Alan Withy; Som: Charles Poulton; Efeitos visuais: George Gunn, E. Hague; Companhias de produção: The Archers, Independent Producers; Intérpretes: Anton Walbrook (Boris Lermontov ), Marius Goring (Julian Craster), Moira Shearer (Victoria Page), Ludmilla Tchérina (Boronskaja (as Ludmilla Tcherina), Léonide Massine (Grischa Ljubov), Robert Helpmann (Ivan Boleslawsky), Albert Bassermann (Sergei Ratov), Esmond Knight (Livingstone 'Livy' Montagne), Jean Short, Gordon Littmann, Julia Lang, Bill Shine, Austin Trevor, Eric Berry, Irene Browne, Jerry Verno, Derek Elphinstone, Marie Rambert, Joy Rawlins, Marcel Poncin, Michel Bazalgette, Yvonne Andre, Hay Petrie, Alan Carter, Joan Harris, Joan Sheldon, Paula Dunning, Brian Ashbridge, Denis Carey, Lynne Dorval, Helen Ffrance, Robert Dorning, Eddie Gaillard, Paul Hammond, Tommy Linden, Trisha Linova, Anna Marinova, Guy Massey, John Regan, Peggy Sager, Ruth Sendler, Hilda Gaunt, etc. Duração: 133 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/ 6 anos; Data de estreia em Portugal: 23 de Fevereiro de 1950.

ANTON WALBROOK (1896-1967)
Adolf Anton Wohlbrück, mais tarde conhecido como Anton Walbrook, nasceu a 19 de Novembro de 1896 em Viena, Áustria, e viria a falecer a 9 de Agosto de 1967, em Garatshausen, Bavière (RFA). Aluno de Max Reinhardt em Berlim, inicia a sua carreira no teatro e no cinema, começando a ser notado num filme de E.A. Dupont  “Salto Mortale” (1931). Em 1935, as versões alemã, francesa e norte-americana de Miguel Strogoff, assinadas por Richard Eichberg, dão-lhe renome internacional. Judeu e homossexual, foge da Alemanha, perante a ameaça nazi e passa a viver em Inglaterra, sob o nome de Anton Walbrook. Extremamente elegante e algo aristocrata no porte, distante e ligeiramente irónico, interpreta vários papeis em produções históricas e ganha reputação internacional em obras de Michael Powell e Emeric Pressburger, como “49e Parallèle” (1941), “Colonel Blimp” (1943) ou “The Red Shoes” (1948). Trabalha com Thorold Dickinson, Max Ophuls  e Otto Preminger, sendo “I Accuse!”, de José Ferrer, o seu último trabalho no cinema. Passa também pela televisão, antes de falecer, em 1967, vítima de ataque cardíaco. Os restos mortais foram incinerados e as cinzas enterradas na igreja de St John-at-Hampstead, em Londres, como vontade expressa no testamento. Presentemente é um actor muito admirado e considerado por alguns (Martin Scorsese, por exemplo) como um dos melhores intérpretes de sempre. 

Filmografia
Como actor
Na Áustria e na Alemanha: 1915: Marionetten, de Richard Löwenbein; 1923: Martin Luther, de Karl Wüstenhagen; 1924: Mater Dolorosa, de Josef Delmont; 1925: Das Geheimnis von Schloß Elmshöh, de Max Obal; 1931: Salto Mortale, de Ewald André Dupont; 1932: Der Stolz der 3. Kompanie, de Fred Sauer; 1932: Die fünf verfluchten Gentlemen, de Julien Duvivier; Drei von der Stempelstelle, de Eugen Thiele; Melodie der Liebe, de Georg Jacoby; Baby, de Carl Lamac; 1933: Georges et Georgette (Jorge e Georgina), de Roger Le Bon e Reinhold Schünzel; Walzerkrieg, de Ludwig Berger; Keine Angst vor Liebe (Patrões e Empregadas), de Hans Steinhoff; Viktor und Viktoria, de Reinhold Schünzel; 1934: Die vertauschte Braut (As Duas Annys), de Carl Lamac; Maskerade (Mascarada), de Willi Forst; Eine Frau, die weiß, was sie will, de Viktor Janson; Die englische Heirat (Um Casamento Inglês), de Reinhold Schünzel; 1935: Régine (Regina), de Erich Waschneck; Zigeunerbaron, de Karl Hartl; Le Baron tzigane (O Barão Cigano), de Henri Chomette; Ich war Jack Mortimer, de Carl Froelich; Der Student von Prag (O Estudante de Praga), de Arthur Robison; 1936: Michel Strogoff (Miguel Strogoff), de Jacques de Baroncelli e Richard Eichberg (versão francesa); Der Kurier des Zaren (Miguel Strogoff), de Richard Eichberg (versão alemã); Allotria, de Willi Forst; Port-Arthur (Porto Arthur), de Nicolas Farkas;
Após abandonar a Alemanha: 1937: The Soldier and the Lady, de George Nichols Jr.; Victoria the Great (Rainha Vitória), de Herbert Wilcox; The Rat, de Jack Raymond; 1938: Sixty Glorious Years (60 Anos de Glória), de Herbert Wilcox; 1940: Gaslight, de Thorold Dickinson; 1941: Dangerous Moonlight (Aquela Noite em Varsóvia), de Brian Desmond Hurst; 49th Parallel (Os Invasores), de Michael Powell; 1943: The Life and Death of Colonel Blimp (A Vida do Coronel Blimp), de Michael Powell e Emeric Pressburger; 1944: Information Please (curta-metragem)
1945: The Man from Morocco, de Mutz Greenbaum; 1948: The Red Shoes (Os Sapatos Vermelhos), de Michael Powell ed Emeric Pressburger; 1949: The Queen of Spades (A Dama de Espadas), de Thorold Dickinson; 1950: La Ronde (A Ronda), de Max Ophüls; König für eine Nacht, de Paul May; 1951: Wiener Walzer, de Emil E. Reinert; 1952: Le Plaisir (O Prazer), de Max Ophüls (narrador da versão alemã); 1954: L'Affaire Maurizius (O Caso Maurizius), de Julien Duvivier; 1955: Oh... Rosalinda!! (Contos Vienenses), de Michael Powell e Emeric Pressburger; Lola Montès (Lola Montes), de Max Ophüls; 1957: Saint Joan (Santa Joana), de Otto Preminger; 1958: I Accuse!, de José Ferrer; 1960: Venus im Licht (TV); 1962: Laura (TV); 1963: Der Arzt am Scheideweg (TV); 1966: Robert und Elisabeth (TV).

MOIRA SHEARER 
(1926-2006)
Moira Shearer King nasceu a 17 de Janeiro de 1926 , em Dunfermline, Fife, Escócia, e viria a falecer, a 31 de Janeiro de 2006 , em Oxford, Oxfordshire, Inglaterra. Filha de Harold Charles King, actor (ou engenheiro civil, segundo outras fontes), mudou-se com a família para Ndola, na Rodésia do Norte (Zambia), em 1931, onde iniciou as suas aulas de ballet. Estudou na Dunfermline High School. De novo no Reino Unido, a partir de 1936, continuou a estudar dança, agora com Flora Fairbairn, em Londres, e depois com o russo Nicholas Legat. Junta-se então à Sadler's Wells Ballet School. Com o início da II Guerra Mundial, volta a Escócia. Em 1948, porém, já em Londres, atrai o interesse internacional com o seu fulgurante trabalho no filme “The Red Shoes”, da dupla Michael Powell e Emeric Pressburger. Entre 1942 e 1952 torna-se numa das primeiras bailarinas clássicas de renome mundial, com um vasto reportório e tournées internacionais, sendo a bailarina número um do Royal Ballet at Sadler's Wells. Casou, em 1950, com Ludovic Kennedy, jornalista e radialista, com quem viveu até sua morte e passou a escrever uma coluna no “Daily Telegraph”, a comentar livros no "Daily Journal", e a apresentar palestras por todo o mundo. Conta-se que Arthur Freed a queria para contracenar com Fred Astaire em “Casamento Real” (1951), mas Astaire mostrou-se relutante em acompanhar uma bailarina clássica.  Gene Kelly, por seu turno, queria-a como partenaire em “A Lenda dos Beijos Perdidos” (1954), mas neste caso foi ela que não se mostrou disponível.  Para todos os efeitos, para o bem e pra o mal, nunca mais se libertaria da personagem de Vicky de “Os Sapatos Vermelhos”.

Filmografia:
Como actriz e bailarina

1948: The Red Shoes (Os Sapatos Vermelhos), de Michael Powell e Emeric Pressburger; 1951: The Tales of Hoffmann (Os Contos de Hoffmann), de Michael Powell e Emeric Pressburger; 1953: The Story of Three Loves (História de Três Amores), filme em episódios, de Vincente Minnelli e Gottfried Reinhardt (episódio “The Jealous Lover”, de Gottfried Reinhardt); 1955: The Man Who Loved Redheads, de Harold French; 1960: Les Collants Noirs (Um, Dois, Três, Quatro),  de Terence Young; 1960: Peeping Tom (A Vítima do Medo), de Michael Powell; 1987: A Simple Man, de Gillian Lynne (TV).

SESSÃO 10: 8 DE ABRIL DE 2014


AS AVENTURAS DE OLIVER TWIST (1948)

Dickens é um dos autores mais adaptados ao cinema, já aqui o dissemos. Curioso é ver como, com o desenrolar dos anos, a obra de Dickens tem sobrevivido no cinema. Escolhemos para isso quatro filmes, todos eles partindo de um mesmo romance, precisamente “Oliver Twist”.
“Oliver Twist”, de Roman Polanski, a adaptação mais recente, de 2005, não é, para mim, a melhor adaptação do romance, ainda que seja uma versão muito aproximada da intriga concebida por Dickens. Vendo o filme e relendo o livro, notam-se semelhanças que apontam para uma quase ilustração da palavra do escritor, ainda que renascida pela própria experiência pessoal de Polanski. Anteriormente outros realizadores já se tinham ocupado do tema, desde David Lean, que dirigiu “As Aventuras de Oliver Twist” em 1948, uma excelente versão a preto e branco com Alec Guiness num Fagin inesquecível, até Carol Reed que, em 1968, levara a cinema a versão musicada de Lionel Bart, igualmente com bons resultados.
Curiosamente, há nas versões que conhecemos de “Oliver” abordagens diversificadas, mas cenas que parecem transitar de filme para filme. A personagem do bedel do orfanato muda de nome, não muda de figura, a sequência em que Oliver pede “mais comida” e a subsequente ida à direcção do orfanato (que se banqueteia principescamente com lautos pratos de apetitosa comida) parecem quase filmadas do mesmo ângulo e interpretadas pelos mesmos actores… Mas aí é a força da escrita de Dickens que relembra quase um guião de cinema e impõe uma directriz sem recuo.


Centremo-nos, pois, na versão de 1948, de David Lean, “As Aventuras de Oliver Twist” que se destaca logo pela fabulosa fotografia a preto e branco assinada por Guy Green. Desde a sequência inicial que essa fotografia nos agarra, desde essa paisagem batida pelo temporal, com uma mulher grávida a avançar em direcção a um albergue de mendicidade, onde acaba por dar à luz um menino, antes de morrer. Os cenários são rebuscados, os enquadramentos sugestivos, a iluminação contrastada, o efeito seguro. Dir-se-ia, ao ver o desenrolar da obra, que o filme cruza habilmente uma certa tradição de realismo social inglês e alguns vestígios apurados do expressionismo alemão, tanto ao nível do cenários, como da iluminação, do jogo das sombras e das luzes, prolongando-se até pelo desenho das personagens. Nesse aspecto, toda a mise-en-scène (ou realização) é particularmente forte na forma como sugere sem apontar, servindo-se apenas da imagem. Veja-se logo no início, como os poderosos se enquadram, em relação a Oliver: ocupando o espaço, engolindo a criança, estrangulando a frágil silhueta, aprisionando-a num rectângulo sem horizontes.
Quase no final, há uma sequência passada numa taberna que relembra o ambiente de “O Anjo Azul”, de Sternberg, e não raro nos vêm à memória imagens de “Matou”, de Fritz Lang. Mas com a marca da criatividade de David Lean.


Todo o filme é, aliás, uma excelente sucessão de sugestões de imagem e som que tornam inúteis quaisquer explicações trazidas pelo diálogo. Um exemplo: as crianças no albergue têm fome, e têm medo de o dizer. Espreitam os poderosos a comer numa farta mesa, e quando chega a vez de solicitar mais comida tiram à sorte quem o fará. A palha mais curta, que define a iniciativa, cabe a Oliver. Logo todos os colegas se afastam, criando uma clareira de solidão à sua volta. E quando Oliver se dirige ao bedel Bumble, que o espera batendo ameaçadoramente com a varinha na perna, qualquer espectador antecipa as consequências do acto. Todo este clima de medo e prepotência é muito bem dado numa Londres sinistramente esconsa e suja, numa arquitectura de castelo fantasma ou torre de horrores. Neste particular, na elaboração dos cenários, também esta versão de David Lean é brilhante, criando uma reconstituição de época que quase nos transmite não só a cor como o cheiro, os sons e o tacto. E quase nada é apetecível nesta sociedade egoísta e velhaca, mesquinha e gananciosa, hipócrita e prepotente, onde os mais fracos soçobram, quer sejam as crianças como as mulheres.
O filme não é rigorosamente fiel ao livro, mas julgo-o a mais fidedigna de todas as adaptações ao espírito do romance de Dickens, que tem merecido muitas e interessantes versões. Há personagens que desaparecem, Bet, por exemplo, a amiga de Nancy, e situações que surgem condensadas. O que é normal em casos como este. Mas para quem lê Dickens e vê o seu pequenino herói dividir os restos da comida com o cão do cangalheiro e dormir debaixo do balcão de uma agência funerária, assolado pelos fantasmas de uma imaginação povoada por imagens tétricas, esta é definitivamente uma boa recriação do universo de um dos maiores escritores de língua inglesa.
David Lean trouxe para “Oliver Twist” quase toda a equipa que dois anos antes havia realizado “Great Expectations”, com enorme sucesso crítico e de público, incluindo os produtores Ronald Neame e Anthony Havelock-Allan, o já citado director de fotografia Guy Green, o designer John Bryan e o montador Jack Harris. Kay Walsh, que era então mulher de David Lean, e tinha colaborado na adaptação de “As Grandes Esperanças”, interpreta aqui o papel de Nancy.


AS AVENTURAS DE OLIVER TWIST
Título original: Oliver Twist
Realização: David Lean (Inglaterra, 1948); Argumento: David Lean, Stanley Hayn, Eric Ambler, Kay Walsh (estes dois últimos não creditados), segundo romance de Charles Dickens; Produção: Ronald Neame; Música: Arnold Bax; Fotografia (p/b): Guy Green; Montagem: Jack Harris; Casting: Dennis Van Thal; Decoração: T. Hopewell Ash, Claude Momsay; Guarda-roupa: Margaret Furse; Maquilhagem: Stuart Freeborn, George Blackler, Biddy Chrystal; Direcção de Produção: Norman Spencer; Assistentes de realização: George Pollock, Chuck Simpson; Departamento de arte: John Bryan, Claude Mauncy; Som: Stanley Lambourne, Gordon K. McCallum, Winston Ryder; Efeitos especiais: Stanley Grant, Joan Suttie; Efeitos visuais: Les Bowie; Companhias de produção: Cineguild; Intérpretes: John Howard Davies (Oliver Twist), Robert Newton (Bill Sykes), Alec Guinnes (Fagin), Kay Walsh (Nancy), Francis L. Sullivan (Mr. Bumble), Henry Stephenson (Mr. Brownlow), Mary  (Mrs. Corney), Anthony Newley (Artful Dodger), Josephine Stuart (mãe de Oliver), Ralph Truman (Monks), Kathleen Harrison (Mrs Sowerberry), Gibb McLaughlin, Amy Veness, Frederick Lloyd, Henry Edwards, Ivor Barnard, Maurice Denham, Michael Dear, Michael Ripper, Peter Bull, Deidre Doyle, Diana Dors, Kenneth Downey, W.G. Fay, Edie Martin, Fay Middleton, Graveley Edwards, John Potter, Maurice Jones, Hattie Jacques, Betty Paul, etc. Duração: 116 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 4 de Maio de 1950.

CHARLES DICKENS (1812-1870)
Charles John Huffam Dickens nasceu no dia 7 de Fevereiro de 1812, em Portsmouth (387, Mile End Terrace, Landport, Portsea) no Hampshire, no sul de Inglaterra, filho de John Dickens, funcionário da Armada, e de Elizabeth Barrow. Aos cinco anos, a família mudou-se para Chatham, no Kent, onde prolongou uma infância apenas remediada, mas suficientemente rica de um ponto de vista cultural. Foi a mãe quem o ensinou a ler, actividade que desenvolveu depois de forma voraz, consumindo quer novelas picarescas de Tobias Smollett e Henry Fielding, quer obras de um outro fôlego, como as de Daniel Defoe ou Goldsmith, o "Dom Quixote", o "Gil Blas" ou as "Mil e uma Noites". Foi nestes títulos, em personagens e situações que não mais esqueceria, que foi beber muita da influência que mais tarde iria dispersar pela sua obra.
Se a família tinha algumas posses, se o jovem Charles conseguiu mesmo frequentar uma escola privada durante a infância, tudo se alteraria a partir do momento em que o pai foi preso por dívidas. Muda-se, então, com a mãe e irmãos, para o popular bairro de Camden Town, em Londres. Tinha dez anos, viviam em quartos pobres e empenhavam as pratas e os livros. Era necessário arranjar dinheiro para a família e Charles foi encontrar trabalho, dois anos depois, numa fábrica de graxa para sapatos, na Warren’s, uma empresa de um amigo da família, que ficava onde hoje se encontra a estação ferroviária de Charing Cross. Colava rótulos nos frascos de graxa e ganhava seis xelins por semana.
Passados alguns anos, uma herança paterna libertou a família da prisão, mas não Dickens da fábrica. Aí conheceria um amigo, da sua idade, cuja história iria transformar na intriga central de “Oliver Twist”. Diz a lenda. O universo infantil, a sua exploração em termos de trabalho escravo, seriam a partir daqui uma das suas obsessões. Em Maio de 1827, Dickens começou a trabalhar como amanuense num cartório. Poderia nessa altura ter seguido a carreira de advogado, mas preferiu aprender taquigrafia e ser, durante algum tempo, estenógrafo do tribunal. Continuava a devorar livros, agora na biblioteca do British Museum. Apaixona-se pela filha de um banqueiro, Maria Beadnell, mas os banqueiros não querem as filhas casadas com filhos de presos por dívidas, o caso morre ali, para grande desgosto de Dickens.
É por essa altura que se inicia na escrita, como jornalista, primeiramente cronista judicial e, depois, relatando os debates parlamentares e cobrindo as campanhas eleitorais. Viaja pelo país, de diligência, e escreve “Sketches by Boz” (Boz foi o pseudónimo por ele escolhido, inspirado na alcunha do seu irmão mais novo, que era incapaz de pronunciar a palavra Moses). “Sketches by Boz” eram pequenas peças jornalísticas que surgiam no “Morning Chronicle”. Tinha pouco mais de vinte anos quando “The Pickwick Papers” iria confirmá-lo como escritor e estabelecer uma mística.
Em finais de Março de 1836 sai o primeiro fascículo de “Pickwick” e, dias depois, casa com Catherine Hogarth, que lhe dará dez filhos, cujos nomes suscitam homenagens a referências literárias: Charles Culliford Boz Dickens (6 de Janeiro, 1837 - 1896), Mary Angela Dickens (6 de Março, 1838 - 1896), Kate Macready Dickens (29 de Outubro, 1839 - 1929), Walter Landor Dickens (8 de Fevereiro, 1841 - 1861), Francis Jeffrey Dickens (15 de Janeiro, 1844 - 1886), Alfred D'Orsay Tennyson Dickens (28 de Outubro, 1845 - 1912), Sydney Smith Haldimand Dickens (18 de Abril, 1847 - 1872), Henry Fielding Dickens (15 de Janeiro, 1849 - 1933), Dora Annie Dickens (16 de Agosto, 1850 - Abril, 1851) e Edward Bulwer Lytton Dickens (13 de Março, 1852 - 1902). Houve quem visse nesta ligação dos nomes dos filhos à história da literatura inglesa uma forma de Dickens iniciar uma “dinastia literária”. Tal não aconteceu. Uns esbanjaram dinheiro, outros aproveitaram-se da celebridade do pai, mas apenas Monica Dickens, uma bisneta, ganharia algum renome com a escrita de romances.
“The Pickwick Papers” começa por não ser um sucesso público, vende uns discretos 400 exemplares no seu lançamento, mas a partir da altura em que aparece o criado de Pickwick, Sam Weller, personagem que relembra Sancho Pança numa versão “cockney”, é que o triunfo sucede e se atingem os 40 000 exemplares de vendas. Em 1836, é obra! Dois anos depois do triunfo de Pickwick, Dickens lança-se na publicação, igualmente em folhetins semanais, de “Oliver Twist”. O livro penetra nas suas recordações de infância, no mundo da criança maltratada, no universo depressivo e opressor de uma sociedade de profundas injustiças sociais, no âmago da Inglaterra industrial e vitoriana de um ascendente capitalismo selvagem e desregrado.
Já célebre e com reputação mundial de escritor consagrado viaja com a mulher pelos EUA, onde é recebido entusiasticamente, servindo a viagem de base a “American Notes” e influenciando ainda alguns capítulos de “Martin Chuzzlewit”. Mas cedo voltou os americanos contra si, ao acusar os seus escritores e editores de plagiarem a literatura inglesa e não pagarem os direitos referentes às suas obras que circulam em edições piratas.


Em 1843, publica “A Christmas Carol”, a mais famosa obra dedicada ao Natal, que conta com milhares de edições em todas as línguas, e adaptações a todas as formas de narrativa, desde o cinema, a televisão, a banda desenhada, o teatro… Curioso que Dickens é um autor profundamente crítico quanto às religiões, particularmente o cristianismo. Foi ele que disse: "Eu acredito que a disseminação do catolicismo é o meio mais horrível de degradação política e social deixado no mundo." Mas foi igualmente ele quem disse: “O Natal é um tempo de benevolência, perdão, de generosidade e alegria. A única época que conheço, no calendário do ano, em que os homens e as mulheres parecem, de comum acordo, abrir livremente seus corações. Deus abençoe o Natal!” ou ainda: “Honrarei o Natal no meu coração, e tentarei mantê-lo o ano todo”. Realmente pouco escritores sentiram esse espírito natalício como Dickens, o que explica certamente o sucesso do seu “Conto de Natal”.
Mas a esta história, outras se seguem, igualmente impregnadas de espírito natalício, como “The Chimes” (1844), escrita em Génova, ou “The Cricket on the Hearth” (1845). Em 1846 aparece como director de um jornal, o “Daily News”, mas a experiência dura pouco e, em 1848, sai “Dombey and Son”, abordando a revolução industrial na perspectiva dos operários dos transportes ferroviários. No ano seguinte, publica outro dos seus romances mais populares, “David Copperfield”, em grande parte autobiográfico, recuperando muitos aspectos da sua infância e adolescência. Em 1854, será a vez "Tempos Difíceis", dedicado ao escritor e amigo Thomas Carlyle.
A revista semanal “Household Words”, onde viria a publicar, em folhetins, alguns dos seus romances, foi fundada também por ele, em 1850. A publicação seria reformulada, em 1859, mudando de nome para “All the year round”.
Extremamente popular na época, lido por milhares de leitores em todo o mundo, contando com um público fiel, Dickens tornou-se um homem de teres e haveres, o que lhe permitiu concretizar um sonho de criança e adquirir, em 1856, uma casa e propriedade de nome “Gad’s Hill Place”, perto de Chatham, onde passaria a viver até à sua morte. O local tinha também um significado especial porque algumas cenas do “Henrique V”, de Shakespeare, estavam indicadas como localizadas nessa mesma área.
Mas a vida de Dickens ficou marcada por vários dramas e tragédias. A morte súbita da irmã da mulher, Georgina, com apenas 19 anos, foi uma delas, pois o escritor tinha por ela uma grande afeição. Em 1858, distanciado da mulher que amara, mas que entretanto o desiludira (ou que ele desiludira, consoante as versões), divorcia-se, decisão obviamente não muito bem vista nessa época, sobretudo entre notáveis. Houve rumores de um caso amoroso com a cunhada Georgina, mais tarde uma ligação fortuita com o seu amor de adolescência, Maria Beadnell, posteriormente o seu grande caso com a actriz Ellen Ternan, mais nova que ele vinte e sete anos.
A 9 de Junho de 1865, ao regressar de França, onde fora visitar a amante, Dickens sofreu um acidente ferroviário, em Staplehurst. As seis primeiras carruagens do comboio caíram de uma ponte em reparação, a única carruagem que não se desmoronou foi aquela onde viajava Dickens, Ellen Ternan e a mãe desta. As duas senhoras desapareceram rapidamente do local da tragédia, o escritor desmultiplicou-se no auxílio aos feridos e quase se ia esquecendo de um original entre os destroços. Mas lembrou-se a tempo de resgatar, de dentro da carruagem do comboio, o manuscrito inacabado do seu romance “Our Mutual Friend”. Abafada a ocorrência, Ellen iria tornar-se na companheira fiel que não o abandonou até ao final dos seus dias, apesar de nunca se terem casado oficialmente. Mas o incidente teve outras consequências no escritor. Apesar de ter saído aparentemente ileso do acidente, nunca mais recuperou totalmente do choque. O ritmo da sua produção literária decresceu bastante depois deste episódio. Irá terminar lentamente “Our Mutual Friend” e não irá completar “The Mystery of Edwin Drood”, onde alguns estudiosos dizem sentir a influência de Wilkie Collins, amigo de Dickens e um dos pioneiros do romance policial. Dedicou grande parte dos últimos anos da sua vida a esforçadas e emotivas leituras públicas, que o debilitaram também. Sozinho em palco, lia de forma arrebatada e comovente excertos de obras suas que entusiasmavam as plateias. Foram essas leituras que o levaram novamente à América em 1867, desta vez em triunfo constante.
Cinco anos depois do acidente de Staplehurst, exactamente no dia 9 de Junho de 1870, morreu e foi sepultado no “Poets' Corner”, na Abadia de Westminster. O túmulo encerra numa frase uma vida: “Apoiante dos pobres, dos que sofrem e dos oprimidos. Com a sua morte desaparece um dos maiores escritores que a Inglaterra deu ao mundo.” A sua glória não pára de crescer. Em 1980, a histórica Eastgate House, em Rochester, no Kent, foi convertida num museu dedicado a Charles Dickens. É aí também que, anualmente, se realiza o Festival Dickens. A casa onde nasceu, em Portsmouth é igualmente um museu. Londres também tem a sua casa-museu Dickens (Doughty Street, 48).


Dickens no Cinema
Em vista do que atrás se disse, não será de estranhar ele ser um dos autores mais adaptados ao cinema e à televisão. A sua escrita é altamente cinematográfica, porque muito visual, muito próxima do leitor, crítica e emotiva, simultaneamente erudita e popular. Dickens é o escritor completo, cuja modernidade não passa. Foi moderno no seu tempo, continua moderno hoje. Os seus temas não passam de moda, porque apesar de se reportarem a um local e um tempo definido, são intemporais. Ele fala da Inglaterra do século XIX, mas nós sentimo-lo como se estivesse hoje, ao nosso lado. Quando se introduz o nome de Charles Dickens no imdb, site cinematográfico por excelência, aparecem mais de 325 títulos de obras cinematográficas ou televisivas adaptadas de escritos do romancista inglês. Muitos deles referem séries com dezenas de episódios. Arthur Conan Doyle, outro escritor inglês muito popular no cinema, não ultrapassa as 220 entradas.
Se oficialmente a história do cinema começa no dia 28 de Dezembro de 1895, em Paris, com a primeira sessão publica dos Irmãos Lumière, temos de registar que, logo em Abril de 1897, apareceu o primeiro, ou um dos primeiros filmes, nessa altura ainda curtos filmes de alguns minutos, adaptado de Oliver Twist. Dizia respeito apenas a um episódio do livro, chamava-se “Death of Nancy Sykes”, e era uma produção norte-americana, com um elenco onde apareciam Mabel Fenton, em Nancy Sykes, e Charles Ross, em Bill Sykes. Esta é a primeira adaptação conhecida, mas é possível que existam outras.
No ano seguinte, 1897, é rodado, agora em Inglaterra, “Mr. Bumble the Beadle”, um produção de Robert W. Paul. A mesma produtora lança, em 1901, “Mr. Pickwick's Christmas at Wardle's”, uma realização de Walter R. Booth, e ainda em Inglaterra, no mesmo ano, a Paul's Animatograph Works estreia uma nova realização de Walter R. Booth, “Scrooge, or Marley's Ghost”. Sabe-se que durava 11 minutos. Novo romance de Dickens é adaptado em 1903, “Nicholas Nickleby”, com direcção de Alf Collins, e interpretação de William Carrington, no papel de Pupil. A produção é da Gaumont.
Entre 1897 e 1927, data em que o “mudo” começa a ceder o lugar ao “sonoro”, conhecem-se cerca de uma centena de adaptações de obras de Charles Dickens ao cinema. Impossível dar conta de todas aqui, mas é conveniente referir uma das mais famosas, ainda hoje, um "Oliver Twist" de 1922, filmado no auge do cinema mudo, realizado por um dos grandes cineastas norte-americanos deste período entre duas épocas, Frank Lloyd. Em Portugal estreou-se com o título “Herança de Miudinho”, no dia 24 de Agosto de 1925 e Jackie Coogan, o fabuloso “Garoto de Charlot”, era um inesquecível Oliver Twist, enquanto Lon Chaney, um actor que era conhecido como “o homem das mil caras”, compunha a figura de Fagin.
Por essa altura, os filmes já tinham uma duração mais convencional, cerca de hora e meia, e a produção era de Jackie Coogan Productions, o que dá bem ideia do sucesso deste miudinho que triunfara em 1921, com “The Kid”, de Charlie Chaplin. A sua criação impôs uma personagem, que em Portugal ficou conhecida por “o miudinho” e que se renova regularmente em obras como “Miudinho não Tem Emenda”, “O Pobre Miudinho”, “Herança de Miudinho”, “A Orfandade de Miudinho” (1921), “Miudinho, Artista de Circo” ou “O Miudinho Trapeiro” (1925). “Oliver Twist” é tragado nesta onda de “miudinhos” e os distribuidores portugueses da época preferiram chamar “Herança de Miudinho” a “Oliver Twist”, levando assim a crer que, na década de 20, valia mais junto do critério do grande público um miudinho como Jackie Coogan do que um escritor como Charles Dickens.
De conjectura em conjectura, pois por esta época é difícil assegurar a veracidade das informações, dado que milhares de filmes foram desaparecendo na voragem do nitrato de prata, dos incêndios e do tempo, parece que o primeiro filme sonoro retirado de uma obra de Dickens foi uma curta produção inglesa, da British Sound Film Productions, de 1928, com cerca de 9 minutos, “Scrooge”, dirigida por Hugh Croise, com Bransby Williams compondo a figura do avarento Ebenezer Scrooge.
A primeira longa-metragem sonora digna de referência data de 1931, partia do romance "Dombey and Son", era uma realização de um outro grande cineasta de Hollywood, John Cromwell. Em português recebeu o título “Audácia que Assombra” (Rich Man's Folly), era uma produção da Paramount Pictures, com George Bancroft, como Brock Trumbull, Frances Dee, como Ann Trumbull, Robert Ames, como Joe Warren e Juliette Compton como Paula Norcross.
São igualmente algumas centenas as adaptações de obras de Dickens durante o sonoro. Ingleses e americanos levam a dianteira na empreitada, mas desde o Japão até ao Brasil, passando por Portugal, há produções em todas as línguas e para todos os gostos. Vamos apenas salientar algumas:
George Cukor, em 1935, dá-nos “Vida e Aventuras de David Copperfield” (The Personal History, Adventures, Experience, & Observation of David Copperfield the Younger), com um bom elenco, Basil Rathbone, Lionel Barrymore, Elsa Lanchester e Freddie Bartholomew. Uma produção da Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), que insistiria na obra do escritor em 1935, agora “Duas Cidades” (A Tale of Two Cities), com a assinatura de Jack Conway, com Ronald Colman, Elizabeth Allan, Edna May Oliver, Reginald Owen e Basil Rathbone.
Na década de 40 surgia a televisão nos Estados Unidos e rapidamente Dickens se tornou um autor eleito para este novo tipo de espectáculo audiovisual. “A Christmas Carol, de 1943, dirigido por George Lowther, é um dos primeiros exemplos, emitido na noite de 22 de Dezembro de 1943, uma prática que depois se tornaria muito corrente. Roger De Koven, Ralph Locke e William Podmore, este em Ebenezer Scrooge, eram os protagonistas desta versão para TV a preto e branco. A produção era da W2XWV New York City. Da década de 40 até à actualidade, as adaptações para televisão da quase totalidade da bibliografia de Dickens tem sido uma constante, com múltiplas séries, telefilmes, obras de animação ou em imagem real.
Regressando à década de 40 do século passado, em Inglaterra, surgem duas das mais afortunadas adaptações de Dickens ao cinema, ambas levadas a cabo por um mestre, infelizmente nem sempre reconhecido enquanto tal, David Lean. “Grandes Esperanças” (Great Expectations), data de 1946, e conta com actores como John Mills, Valerie Hobson, Jean Simmons, Bernard Miles, Finlay Currie, Alec Guinness e Tony Wager na figura do jovem Pip. Trata-se de uma das mais fiéis adaptações da obra do escritor britânico, bem assim como uma excelente reconstituição da época em que a acção decorre, nessa Londres vitoriana, com profundas divisões sociais que a industrialização selvagem ajudara a acentuar. O êxito do filme permitiu a David Lean voltar ao mesmo escritor, dois anos depois, agora através de “As Aventuras de Oliver Twist” (Oliver Twist), com um belíssimo naipe de actores. Falaremos adiante desta obra com mais destaque.
“The Life and Adventures of Nicholas Nickleby”, de Alberto Cavalcanti (1947), é outra boa referência inglesa deste período, com actores de excepção, Derek Bond, Cedric Hardwicke, Mary Merrall, Sally Ann Howes, Bernard Miles, etc. De 1951, é “O Homem e o Espectro”, de Brian Desmond Hurst, adaptação de "A Christmas Carol", com uma composição invulgar de Alastair Sim no papel de Ebenezer Scrooge.
Depois de ter conhecido um enorme sucesso nos palcos londrinos, a versão musical de “Oliver!”, surge em 1968, pela mão de Carol Reed, com inspirada partitura musical de Lionel Bart. O filme seria coroado por seis Oscars e mais seis nomeações. e há presenças igualmente inesquecíveis nesta obra, Ron Moody, em Fagin, Oliver Reed, em Bill Sykes, e ainda Shani Wallis, Harry Secombe, Jack Wild, Hugh Griffith e o jovem Mark Lester, em Oliver Twist.
O universo de Dickens tem sobrevivido a tudo, até a adaptações estranhas, como a de “SOS Fantasmas” (Scrooged), de 1988, dirigida por Richard Donner, com Bill Murray, Karen Allen, John Forsythe, John Glover, Carol Kane e Robert Mitchum. Ou a popular versão dos Muppets, “O Conto de Natal dos Marretas” (The Muppet Christmas Carol), de 1992, numa realização de Brian Henson, com um saboroso Michael Caine a compor a disputada figura de Ebenezer Scrooge, rodeado por toda a galeria dos fabuloso bonecos criados por Jim Henson.
A obra de Dickens não se esgota e o cinema e a televisão não se cansam de nela procurar inspiração. Em 1998, Alfonso Cuarón regressa a “Grandes Esperanças”, com Ethan Hawke e Gwyneth Paltrow. Em 2002, surge uma nova versão de “Nicholas Nickleby”, dirigida por Douglas McGrath. Em 2005 será a vez de Roman Polanski tornar seu Oliver, outra grande adaptação de que falaremos mais adiante. Finalmente, em 2009, “Um Conto de Natal” (A Christmas Carol), em 3D, com Jim Carey, assinala o encontro de Robert Zemeckis com Dickens. Gary Oldman, Colin Firth, Cary Elwes, Robin Wright Penn ou Bob Hoskins estão no elenco desta obra que mistura habilmente imagem real e desenho animado.

É altura de sublinhar que também os cineastas portugueses não ficaram alheios ao fascínio de Dickens e à sua vibrante critica social.  Em 1988, João Botelho socorre-se das palavras do escritor para nos dar uma adaptação sua de “Tempos Difíceis”, com cenários habilmente escolhidos entre Lisboa e Barreiro, e um elenco de luxo para a nossa terra, Henrique Viana, Júlia Britton, Eunice Muñoz, Ruy Furtado, Isabel de Castro, Isabel Ruth, Lia Gama, Inês de Medeiros, Pedro Cabrita Reis, entre outros. Uma adaptação dos tempos difíceis ingleses à realidade portuguesa, num magnífico preto e branco, onde a plasticidade visual de Botelho resultou bem.