quinta-feira, 27 de março de 2014

SESSÃO 10: 8 DE ABRIL DE 2014


AS AVENTURAS DE OLIVER TWIST (1948)

Dickens é um dos autores mais adaptados ao cinema, já aqui o dissemos. Curioso é ver como, com o desenrolar dos anos, a obra de Dickens tem sobrevivido no cinema. Escolhemos para isso quatro filmes, todos eles partindo de um mesmo romance, precisamente “Oliver Twist”.
“Oliver Twist”, de Roman Polanski, a adaptação mais recente, de 2005, não é, para mim, a melhor adaptação do romance, ainda que seja uma versão muito aproximada da intriga concebida por Dickens. Vendo o filme e relendo o livro, notam-se semelhanças que apontam para uma quase ilustração da palavra do escritor, ainda que renascida pela própria experiência pessoal de Polanski. Anteriormente outros realizadores já se tinham ocupado do tema, desde David Lean, que dirigiu “As Aventuras de Oliver Twist” em 1948, uma excelente versão a preto e branco com Alec Guiness num Fagin inesquecível, até Carol Reed que, em 1968, levara a cinema a versão musicada de Lionel Bart, igualmente com bons resultados.
Curiosamente, há nas versões que conhecemos de “Oliver” abordagens diversificadas, mas cenas que parecem transitar de filme para filme. A personagem do bedel do orfanato muda de nome, não muda de figura, a sequência em que Oliver pede “mais comida” e a subsequente ida à direcção do orfanato (que se banqueteia principescamente com lautos pratos de apetitosa comida) parecem quase filmadas do mesmo ângulo e interpretadas pelos mesmos actores… Mas aí é a força da escrita de Dickens que relembra quase um guião de cinema e impõe uma directriz sem recuo.


Centremo-nos, pois, na versão de 1948, de David Lean, “As Aventuras de Oliver Twist” que se destaca logo pela fabulosa fotografia a preto e branco assinada por Guy Green. Desde a sequência inicial que essa fotografia nos agarra, desde essa paisagem batida pelo temporal, com uma mulher grávida a avançar em direcção a um albergue de mendicidade, onde acaba por dar à luz um menino, antes de morrer. Os cenários são rebuscados, os enquadramentos sugestivos, a iluminação contrastada, o efeito seguro. Dir-se-ia, ao ver o desenrolar da obra, que o filme cruza habilmente uma certa tradição de realismo social inglês e alguns vestígios apurados do expressionismo alemão, tanto ao nível do cenários, como da iluminação, do jogo das sombras e das luzes, prolongando-se até pelo desenho das personagens. Nesse aspecto, toda a mise-en-scène (ou realização) é particularmente forte na forma como sugere sem apontar, servindo-se apenas da imagem. Veja-se logo no início, como os poderosos se enquadram, em relação a Oliver: ocupando o espaço, engolindo a criança, estrangulando a frágil silhueta, aprisionando-a num rectângulo sem horizontes.
Quase no final, há uma sequência passada numa taberna que relembra o ambiente de “O Anjo Azul”, de Sternberg, e não raro nos vêm à memória imagens de “Matou”, de Fritz Lang. Mas com a marca da criatividade de David Lean.


Todo o filme é, aliás, uma excelente sucessão de sugestões de imagem e som que tornam inúteis quaisquer explicações trazidas pelo diálogo. Um exemplo: as crianças no albergue têm fome, e têm medo de o dizer. Espreitam os poderosos a comer numa farta mesa, e quando chega a vez de solicitar mais comida tiram à sorte quem o fará. A palha mais curta, que define a iniciativa, cabe a Oliver. Logo todos os colegas se afastam, criando uma clareira de solidão à sua volta. E quando Oliver se dirige ao bedel Bumble, que o espera batendo ameaçadoramente com a varinha na perna, qualquer espectador antecipa as consequências do acto. Todo este clima de medo e prepotência é muito bem dado numa Londres sinistramente esconsa e suja, numa arquitectura de castelo fantasma ou torre de horrores. Neste particular, na elaboração dos cenários, também esta versão de David Lean é brilhante, criando uma reconstituição de época que quase nos transmite não só a cor como o cheiro, os sons e o tacto. E quase nada é apetecível nesta sociedade egoísta e velhaca, mesquinha e gananciosa, hipócrita e prepotente, onde os mais fracos soçobram, quer sejam as crianças como as mulheres.
O filme não é rigorosamente fiel ao livro, mas julgo-o a mais fidedigna de todas as adaptações ao espírito do romance de Dickens, que tem merecido muitas e interessantes versões. Há personagens que desaparecem, Bet, por exemplo, a amiga de Nancy, e situações que surgem condensadas. O que é normal em casos como este. Mas para quem lê Dickens e vê o seu pequenino herói dividir os restos da comida com o cão do cangalheiro e dormir debaixo do balcão de uma agência funerária, assolado pelos fantasmas de uma imaginação povoada por imagens tétricas, esta é definitivamente uma boa recriação do universo de um dos maiores escritores de língua inglesa.
David Lean trouxe para “Oliver Twist” quase toda a equipa que dois anos antes havia realizado “Great Expectations”, com enorme sucesso crítico e de público, incluindo os produtores Ronald Neame e Anthony Havelock-Allan, o já citado director de fotografia Guy Green, o designer John Bryan e o montador Jack Harris. Kay Walsh, que era então mulher de David Lean, e tinha colaborado na adaptação de “As Grandes Esperanças”, interpreta aqui o papel de Nancy.


AS AVENTURAS DE OLIVER TWIST
Título original: Oliver Twist
Realização: David Lean (Inglaterra, 1948); Argumento: David Lean, Stanley Hayn, Eric Ambler, Kay Walsh (estes dois últimos não creditados), segundo romance de Charles Dickens; Produção: Ronald Neame; Música: Arnold Bax; Fotografia (p/b): Guy Green; Montagem: Jack Harris; Casting: Dennis Van Thal; Decoração: T. Hopewell Ash, Claude Momsay; Guarda-roupa: Margaret Furse; Maquilhagem: Stuart Freeborn, George Blackler, Biddy Chrystal; Direcção de Produção: Norman Spencer; Assistentes de realização: George Pollock, Chuck Simpson; Departamento de arte: John Bryan, Claude Mauncy; Som: Stanley Lambourne, Gordon K. McCallum, Winston Ryder; Efeitos especiais: Stanley Grant, Joan Suttie; Efeitos visuais: Les Bowie; Companhias de produção: Cineguild; Intérpretes: John Howard Davies (Oliver Twist), Robert Newton (Bill Sykes), Alec Guinnes (Fagin), Kay Walsh (Nancy), Francis L. Sullivan (Mr. Bumble), Henry Stephenson (Mr. Brownlow), Mary  (Mrs. Corney), Anthony Newley (Artful Dodger), Josephine Stuart (mãe de Oliver), Ralph Truman (Monks), Kathleen Harrison (Mrs Sowerberry), Gibb McLaughlin, Amy Veness, Frederick Lloyd, Henry Edwards, Ivor Barnard, Maurice Denham, Michael Dear, Michael Ripper, Peter Bull, Deidre Doyle, Diana Dors, Kenneth Downey, W.G. Fay, Edie Martin, Fay Middleton, Graveley Edwards, John Potter, Maurice Jones, Hattie Jacques, Betty Paul, etc. Duração: 116 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 4 de Maio de 1950.

CHARLES DICKENS (1812-1870)
Charles John Huffam Dickens nasceu no dia 7 de Fevereiro de 1812, em Portsmouth (387, Mile End Terrace, Landport, Portsea) no Hampshire, no sul de Inglaterra, filho de John Dickens, funcionário da Armada, e de Elizabeth Barrow. Aos cinco anos, a família mudou-se para Chatham, no Kent, onde prolongou uma infância apenas remediada, mas suficientemente rica de um ponto de vista cultural. Foi a mãe quem o ensinou a ler, actividade que desenvolveu depois de forma voraz, consumindo quer novelas picarescas de Tobias Smollett e Henry Fielding, quer obras de um outro fôlego, como as de Daniel Defoe ou Goldsmith, o "Dom Quixote", o "Gil Blas" ou as "Mil e uma Noites". Foi nestes títulos, em personagens e situações que não mais esqueceria, que foi beber muita da influência que mais tarde iria dispersar pela sua obra.
Se a família tinha algumas posses, se o jovem Charles conseguiu mesmo frequentar uma escola privada durante a infância, tudo se alteraria a partir do momento em que o pai foi preso por dívidas. Muda-se, então, com a mãe e irmãos, para o popular bairro de Camden Town, em Londres. Tinha dez anos, viviam em quartos pobres e empenhavam as pratas e os livros. Era necessário arranjar dinheiro para a família e Charles foi encontrar trabalho, dois anos depois, numa fábrica de graxa para sapatos, na Warren’s, uma empresa de um amigo da família, que ficava onde hoje se encontra a estação ferroviária de Charing Cross. Colava rótulos nos frascos de graxa e ganhava seis xelins por semana.
Passados alguns anos, uma herança paterna libertou a família da prisão, mas não Dickens da fábrica. Aí conheceria um amigo, da sua idade, cuja história iria transformar na intriga central de “Oliver Twist”. Diz a lenda. O universo infantil, a sua exploração em termos de trabalho escravo, seriam a partir daqui uma das suas obsessões. Em Maio de 1827, Dickens começou a trabalhar como amanuense num cartório. Poderia nessa altura ter seguido a carreira de advogado, mas preferiu aprender taquigrafia e ser, durante algum tempo, estenógrafo do tribunal. Continuava a devorar livros, agora na biblioteca do British Museum. Apaixona-se pela filha de um banqueiro, Maria Beadnell, mas os banqueiros não querem as filhas casadas com filhos de presos por dívidas, o caso morre ali, para grande desgosto de Dickens.
É por essa altura que se inicia na escrita, como jornalista, primeiramente cronista judicial e, depois, relatando os debates parlamentares e cobrindo as campanhas eleitorais. Viaja pelo país, de diligência, e escreve “Sketches by Boz” (Boz foi o pseudónimo por ele escolhido, inspirado na alcunha do seu irmão mais novo, que era incapaz de pronunciar a palavra Moses). “Sketches by Boz” eram pequenas peças jornalísticas que surgiam no “Morning Chronicle”. Tinha pouco mais de vinte anos quando “The Pickwick Papers” iria confirmá-lo como escritor e estabelecer uma mística.
Em finais de Março de 1836 sai o primeiro fascículo de “Pickwick” e, dias depois, casa com Catherine Hogarth, que lhe dará dez filhos, cujos nomes suscitam homenagens a referências literárias: Charles Culliford Boz Dickens (6 de Janeiro, 1837 - 1896), Mary Angela Dickens (6 de Março, 1838 - 1896), Kate Macready Dickens (29 de Outubro, 1839 - 1929), Walter Landor Dickens (8 de Fevereiro, 1841 - 1861), Francis Jeffrey Dickens (15 de Janeiro, 1844 - 1886), Alfred D'Orsay Tennyson Dickens (28 de Outubro, 1845 - 1912), Sydney Smith Haldimand Dickens (18 de Abril, 1847 - 1872), Henry Fielding Dickens (15 de Janeiro, 1849 - 1933), Dora Annie Dickens (16 de Agosto, 1850 - Abril, 1851) e Edward Bulwer Lytton Dickens (13 de Março, 1852 - 1902). Houve quem visse nesta ligação dos nomes dos filhos à história da literatura inglesa uma forma de Dickens iniciar uma “dinastia literária”. Tal não aconteceu. Uns esbanjaram dinheiro, outros aproveitaram-se da celebridade do pai, mas apenas Monica Dickens, uma bisneta, ganharia algum renome com a escrita de romances.
“The Pickwick Papers” começa por não ser um sucesso público, vende uns discretos 400 exemplares no seu lançamento, mas a partir da altura em que aparece o criado de Pickwick, Sam Weller, personagem que relembra Sancho Pança numa versão “cockney”, é que o triunfo sucede e se atingem os 40 000 exemplares de vendas. Em 1836, é obra! Dois anos depois do triunfo de Pickwick, Dickens lança-se na publicação, igualmente em folhetins semanais, de “Oliver Twist”. O livro penetra nas suas recordações de infância, no mundo da criança maltratada, no universo depressivo e opressor de uma sociedade de profundas injustiças sociais, no âmago da Inglaterra industrial e vitoriana de um ascendente capitalismo selvagem e desregrado.
Já célebre e com reputação mundial de escritor consagrado viaja com a mulher pelos EUA, onde é recebido entusiasticamente, servindo a viagem de base a “American Notes” e influenciando ainda alguns capítulos de “Martin Chuzzlewit”. Mas cedo voltou os americanos contra si, ao acusar os seus escritores e editores de plagiarem a literatura inglesa e não pagarem os direitos referentes às suas obras que circulam em edições piratas.


Em 1843, publica “A Christmas Carol”, a mais famosa obra dedicada ao Natal, que conta com milhares de edições em todas as línguas, e adaptações a todas as formas de narrativa, desde o cinema, a televisão, a banda desenhada, o teatro… Curioso que Dickens é um autor profundamente crítico quanto às religiões, particularmente o cristianismo. Foi ele que disse: "Eu acredito que a disseminação do catolicismo é o meio mais horrível de degradação política e social deixado no mundo." Mas foi igualmente ele quem disse: “O Natal é um tempo de benevolência, perdão, de generosidade e alegria. A única época que conheço, no calendário do ano, em que os homens e as mulheres parecem, de comum acordo, abrir livremente seus corações. Deus abençoe o Natal!” ou ainda: “Honrarei o Natal no meu coração, e tentarei mantê-lo o ano todo”. Realmente pouco escritores sentiram esse espírito natalício como Dickens, o que explica certamente o sucesso do seu “Conto de Natal”.
Mas a esta história, outras se seguem, igualmente impregnadas de espírito natalício, como “The Chimes” (1844), escrita em Génova, ou “The Cricket on the Hearth” (1845). Em 1846 aparece como director de um jornal, o “Daily News”, mas a experiência dura pouco e, em 1848, sai “Dombey and Son”, abordando a revolução industrial na perspectiva dos operários dos transportes ferroviários. No ano seguinte, publica outro dos seus romances mais populares, “David Copperfield”, em grande parte autobiográfico, recuperando muitos aspectos da sua infância e adolescência. Em 1854, será a vez "Tempos Difíceis", dedicado ao escritor e amigo Thomas Carlyle.
A revista semanal “Household Words”, onde viria a publicar, em folhetins, alguns dos seus romances, foi fundada também por ele, em 1850. A publicação seria reformulada, em 1859, mudando de nome para “All the year round”.
Extremamente popular na época, lido por milhares de leitores em todo o mundo, contando com um público fiel, Dickens tornou-se um homem de teres e haveres, o que lhe permitiu concretizar um sonho de criança e adquirir, em 1856, uma casa e propriedade de nome “Gad’s Hill Place”, perto de Chatham, onde passaria a viver até à sua morte. O local tinha também um significado especial porque algumas cenas do “Henrique V”, de Shakespeare, estavam indicadas como localizadas nessa mesma área.
Mas a vida de Dickens ficou marcada por vários dramas e tragédias. A morte súbita da irmã da mulher, Georgina, com apenas 19 anos, foi uma delas, pois o escritor tinha por ela uma grande afeição. Em 1858, distanciado da mulher que amara, mas que entretanto o desiludira (ou que ele desiludira, consoante as versões), divorcia-se, decisão obviamente não muito bem vista nessa época, sobretudo entre notáveis. Houve rumores de um caso amoroso com a cunhada Georgina, mais tarde uma ligação fortuita com o seu amor de adolescência, Maria Beadnell, posteriormente o seu grande caso com a actriz Ellen Ternan, mais nova que ele vinte e sete anos.
A 9 de Junho de 1865, ao regressar de França, onde fora visitar a amante, Dickens sofreu um acidente ferroviário, em Staplehurst. As seis primeiras carruagens do comboio caíram de uma ponte em reparação, a única carruagem que não se desmoronou foi aquela onde viajava Dickens, Ellen Ternan e a mãe desta. As duas senhoras desapareceram rapidamente do local da tragédia, o escritor desmultiplicou-se no auxílio aos feridos e quase se ia esquecendo de um original entre os destroços. Mas lembrou-se a tempo de resgatar, de dentro da carruagem do comboio, o manuscrito inacabado do seu romance “Our Mutual Friend”. Abafada a ocorrência, Ellen iria tornar-se na companheira fiel que não o abandonou até ao final dos seus dias, apesar de nunca se terem casado oficialmente. Mas o incidente teve outras consequências no escritor. Apesar de ter saído aparentemente ileso do acidente, nunca mais recuperou totalmente do choque. O ritmo da sua produção literária decresceu bastante depois deste episódio. Irá terminar lentamente “Our Mutual Friend” e não irá completar “The Mystery of Edwin Drood”, onde alguns estudiosos dizem sentir a influência de Wilkie Collins, amigo de Dickens e um dos pioneiros do romance policial. Dedicou grande parte dos últimos anos da sua vida a esforçadas e emotivas leituras públicas, que o debilitaram também. Sozinho em palco, lia de forma arrebatada e comovente excertos de obras suas que entusiasmavam as plateias. Foram essas leituras que o levaram novamente à América em 1867, desta vez em triunfo constante.
Cinco anos depois do acidente de Staplehurst, exactamente no dia 9 de Junho de 1870, morreu e foi sepultado no “Poets' Corner”, na Abadia de Westminster. O túmulo encerra numa frase uma vida: “Apoiante dos pobres, dos que sofrem e dos oprimidos. Com a sua morte desaparece um dos maiores escritores que a Inglaterra deu ao mundo.” A sua glória não pára de crescer. Em 1980, a histórica Eastgate House, em Rochester, no Kent, foi convertida num museu dedicado a Charles Dickens. É aí também que, anualmente, se realiza o Festival Dickens. A casa onde nasceu, em Portsmouth é igualmente um museu. Londres também tem a sua casa-museu Dickens (Doughty Street, 48).


Dickens no Cinema
Em vista do que atrás se disse, não será de estranhar ele ser um dos autores mais adaptados ao cinema e à televisão. A sua escrita é altamente cinematográfica, porque muito visual, muito próxima do leitor, crítica e emotiva, simultaneamente erudita e popular. Dickens é o escritor completo, cuja modernidade não passa. Foi moderno no seu tempo, continua moderno hoje. Os seus temas não passam de moda, porque apesar de se reportarem a um local e um tempo definido, são intemporais. Ele fala da Inglaterra do século XIX, mas nós sentimo-lo como se estivesse hoje, ao nosso lado. Quando se introduz o nome de Charles Dickens no imdb, site cinematográfico por excelência, aparecem mais de 325 títulos de obras cinematográficas ou televisivas adaptadas de escritos do romancista inglês. Muitos deles referem séries com dezenas de episódios. Arthur Conan Doyle, outro escritor inglês muito popular no cinema, não ultrapassa as 220 entradas.
Se oficialmente a história do cinema começa no dia 28 de Dezembro de 1895, em Paris, com a primeira sessão publica dos Irmãos Lumière, temos de registar que, logo em Abril de 1897, apareceu o primeiro, ou um dos primeiros filmes, nessa altura ainda curtos filmes de alguns minutos, adaptado de Oliver Twist. Dizia respeito apenas a um episódio do livro, chamava-se “Death of Nancy Sykes”, e era uma produção norte-americana, com um elenco onde apareciam Mabel Fenton, em Nancy Sykes, e Charles Ross, em Bill Sykes. Esta é a primeira adaptação conhecida, mas é possível que existam outras.
No ano seguinte, 1897, é rodado, agora em Inglaterra, “Mr. Bumble the Beadle”, um produção de Robert W. Paul. A mesma produtora lança, em 1901, “Mr. Pickwick's Christmas at Wardle's”, uma realização de Walter R. Booth, e ainda em Inglaterra, no mesmo ano, a Paul's Animatograph Works estreia uma nova realização de Walter R. Booth, “Scrooge, or Marley's Ghost”. Sabe-se que durava 11 minutos. Novo romance de Dickens é adaptado em 1903, “Nicholas Nickleby”, com direcção de Alf Collins, e interpretação de William Carrington, no papel de Pupil. A produção é da Gaumont.
Entre 1897 e 1927, data em que o “mudo” começa a ceder o lugar ao “sonoro”, conhecem-se cerca de uma centena de adaptações de obras de Charles Dickens ao cinema. Impossível dar conta de todas aqui, mas é conveniente referir uma das mais famosas, ainda hoje, um "Oliver Twist" de 1922, filmado no auge do cinema mudo, realizado por um dos grandes cineastas norte-americanos deste período entre duas épocas, Frank Lloyd. Em Portugal estreou-se com o título “Herança de Miudinho”, no dia 24 de Agosto de 1925 e Jackie Coogan, o fabuloso “Garoto de Charlot”, era um inesquecível Oliver Twist, enquanto Lon Chaney, um actor que era conhecido como “o homem das mil caras”, compunha a figura de Fagin.
Por essa altura, os filmes já tinham uma duração mais convencional, cerca de hora e meia, e a produção era de Jackie Coogan Productions, o que dá bem ideia do sucesso deste miudinho que triunfara em 1921, com “The Kid”, de Charlie Chaplin. A sua criação impôs uma personagem, que em Portugal ficou conhecida por “o miudinho” e que se renova regularmente em obras como “Miudinho não Tem Emenda”, “O Pobre Miudinho”, “Herança de Miudinho”, “A Orfandade de Miudinho” (1921), “Miudinho, Artista de Circo” ou “O Miudinho Trapeiro” (1925). “Oliver Twist” é tragado nesta onda de “miudinhos” e os distribuidores portugueses da época preferiram chamar “Herança de Miudinho” a “Oliver Twist”, levando assim a crer que, na década de 20, valia mais junto do critério do grande público um miudinho como Jackie Coogan do que um escritor como Charles Dickens.
De conjectura em conjectura, pois por esta época é difícil assegurar a veracidade das informações, dado que milhares de filmes foram desaparecendo na voragem do nitrato de prata, dos incêndios e do tempo, parece que o primeiro filme sonoro retirado de uma obra de Dickens foi uma curta produção inglesa, da British Sound Film Productions, de 1928, com cerca de 9 minutos, “Scrooge”, dirigida por Hugh Croise, com Bransby Williams compondo a figura do avarento Ebenezer Scrooge.
A primeira longa-metragem sonora digna de referência data de 1931, partia do romance "Dombey and Son", era uma realização de um outro grande cineasta de Hollywood, John Cromwell. Em português recebeu o título “Audácia que Assombra” (Rich Man's Folly), era uma produção da Paramount Pictures, com George Bancroft, como Brock Trumbull, Frances Dee, como Ann Trumbull, Robert Ames, como Joe Warren e Juliette Compton como Paula Norcross.
São igualmente algumas centenas as adaptações de obras de Dickens durante o sonoro. Ingleses e americanos levam a dianteira na empreitada, mas desde o Japão até ao Brasil, passando por Portugal, há produções em todas as línguas e para todos os gostos. Vamos apenas salientar algumas:
George Cukor, em 1935, dá-nos “Vida e Aventuras de David Copperfield” (The Personal History, Adventures, Experience, & Observation of David Copperfield the Younger), com um bom elenco, Basil Rathbone, Lionel Barrymore, Elsa Lanchester e Freddie Bartholomew. Uma produção da Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), que insistiria na obra do escritor em 1935, agora “Duas Cidades” (A Tale of Two Cities), com a assinatura de Jack Conway, com Ronald Colman, Elizabeth Allan, Edna May Oliver, Reginald Owen e Basil Rathbone.
Na década de 40 surgia a televisão nos Estados Unidos e rapidamente Dickens se tornou um autor eleito para este novo tipo de espectáculo audiovisual. “A Christmas Carol, de 1943, dirigido por George Lowther, é um dos primeiros exemplos, emitido na noite de 22 de Dezembro de 1943, uma prática que depois se tornaria muito corrente. Roger De Koven, Ralph Locke e William Podmore, este em Ebenezer Scrooge, eram os protagonistas desta versão para TV a preto e branco. A produção era da W2XWV New York City. Da década de 40 até à actualidade, as adaptações para televisão da quase totalidade da bibliografia de Dickens tem sido uma constante, com múltiplas séries, telefilmes, obras de animação ou em imagem real.
Regressando à década de 40 do século passado, em Inglaterra, surgem duas das mais afortunadas adaptações de Dickens ao cinema, ambas levadas a cabo por um mestre, infelizmente nem sempre reconhecido enquanto tal, David Lean. “Grandes Esperanças” (Great Expectations), data de 1946, e conta com actores como John Mills, Valerie Hobson, Jean Simmons, Bernard Miles, Finlay Currie, Alec Guinness e Tony Wager na figura do jovem Pip. Trata-se de uma das mais fiéis adaptações da obra do escritor britânico, bem assim como uma excelente reconstituição da época em que a acção decorre, nessa Londres vitoriana, com profundas divisões sociais que a industrialização selvagem ajudara a acentuar. O êxito do filme permitiu a David Lean voltar ao mesmo escritor, dois anos depois, agora através de “As Aventuras de Oliver Twist” (Oliver Twist), com um belíssimo naipe de actores. Falaremos adiante desta obra com mais destaque.
“The Life and Adventures of Nicholas Nickleby”, de Alberto Cavalcanti (1947), é outra boa referência inglesa deste período, com actores de excepção, Derek Bond, Cedric Hardwicke, Mary Merrall, Sally Ann Howes, Bernard Miles, etc. De 1951, é “O Homem e o Espectro”, de Brian Desmond Hurst, adaptação de "A Christmas Carol", com uma composição invulgar de Alastair Sim no papel de Ebenezer Scrooge.
Depois de ter conhecido um enorme sucesso nos palcos londrinos, a versão musical de “Oliver!”, surge em 1968, pela mão de Carol Reed, com inspirada partitura musical de Lionel Bart. O filme seria coroado por seis Oscars e mais seis nomeações. e há presenças igualmente inesquecíveis nesta obra, Ron Moody, em Fagin, Oliver Reed, em Bill Sykes, e ainda Shani Wallis, Harry Secombe, Jack Wild, Hugh Griffith e o jovem Mark Lester, em Oliver Twist.
O universo de Dickens tem sobrevivido a tudo, até a adaptações estranhas, como a de “SOS Fantasmas” (Scrooged), de 1988, dirigida por Richard Donner, com Bill Murray, Karen Allen, John Forsythe, John Glover, Carol Kane e Robert Mitchum. Ou a popular versão dos Muppets, “O Conto de Natal dos Marretas” (The Muppet Christmas Carol), de 1992, numa realização de Brian Henson, com um saboroso Michael Caine a compor a disputada figura de Ebenezer Scrooge, rodeado por toda a galeria dos fabuloso bonecos criados por Jim Henson.
A obra de Dickens não se esgota e o cinema e a televisão não se cansam de nela procurar inspiração. Em 1998, Alfonso Cuarón regressa a “Grandes Esperanças”, com Ethan Hawke e Gwyneth Paltrow. Em 2002, surge uma nova versão de “Nicholas Nickleby”, dirigida por Douglas McGrath. Em 2005 será a vez de Roman Polanski tornar seu Oliver, outra grande adaptação de que falaremos mais adiante. Finalmente, em 2009, “Um Conto de Natal” (A Christmas Carol), em 3D, com Jim Carey, assinala o encontro de Robert Zemeckis com Dickens. Gary Oldman, Colin Firth, Cary Elwes, Robin Wright Penn ou Bob Hoskins estão no elenco desta obra que mistura habilmente imagem real e desenho animado.

É altura de sublinhar que também os cineastas portugueses não ficaram alheios ao fascínio de Dickens e à sua vibrante critica social.  Em 1988, João Botelho socorre-se das palavras do escritor para nos dar uma adaptação sua de “Tempos Difíceis”, com cenários habilmente escolhidos entre Lisboa e Barreiro, e um elenco de luxo para a nossa terra, Henrique Viana, Júlia Britton, Eunice Muñoz, Ruy Furtado, Isabel de Castro, Isabel Ruth, Lia Gama, Inês de Medeiros, Pedro Cabrita Reis, entre outros. Uma adaptação dos tempos difíceis ingleses à realidade portuguesa, num magnífico preto e branco, onde a plasticidade visual de Botelho resultou bem. 

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