À BEIRA DO ABISMO (1964)
Filme
profundamente inquietante de um cineasta inglês não muito conhecido, mas que
foi um dos nomes grandes nas décadas de 60 e 70 do século passado, sendo
descrito por alguns seus estudiosos como “um homem da Renascença”, dados os
seus múltiplos interesses e talentos. Além de argumentista e realizador, actor
e produtor, escreveu vários romances, biografias e ensaios, e deixou um
conjunto de filmes, por si inteiramente concebidos, com entrada directa em
qualquer história do cinema, entre os quais “Whistle Down the Wind” (1961),
“The L-Shaped Room” (1962), “Séance on a Wet Afternoon” (1964), “King Rat”
(1965), “The Wrong Box” (1966), ou “The Stepford Wives” (1975), entre outros.
“À
Beira do Abismo” é um dos seus trabalhos mais representativos. O argumento é do
próprio Bryan Forbes, adaptando um romance de Mark McShane, e a produção é do
actor (e amigo pessoal do cineasta, seu sócio nalguns empreendimentos), Richard
Attenborough. Este é o estilo de filme que vive essencialmente da atmosfera
absorvente e claustrofóbica que cria, o que é conseguido pela mestria da
realização e pelo espantoso talento dos actores, sobretudo Kim Stanley e
Richard Attenborough, na forma como erguem personagens complexas que se tornam
absolutamente credíveis e inesquecíveis. Este é o estilo de obra que se vê uma
vez e não se esquece mais. Vi-o pela primeira vez aquando da sua estreia e
nunca mais me abandonou o clima obsessivamente patológico que Bryan Forbes
imprimiu a esta película de rara densidade psicológica, que se serve muito do
poder da imagem para sugestionar o espectador.
Myra
Savage (Kim Stanley) perdeu um filho, ou julga ter perdido um filho, no
passado. Mira acha que o espírito dessa criança a visita, acredita que tem
poderes de mediunidade, organiza sessões onde afirma estabelecer a comunicação
entre as suas visitas (seres encarnados) e os espíritos desencarnados que
descem à terra sob diversas formas. O marido, Billy (Richard Attenborough), é
um espírito fraco, que não se atreve a opor-se-lhe. Um dia, para mostrar ao
mundo as suas capacidades de médium, Mary organiza o rapto de uma criança, para
posteriormente demonstrar aos pais como ela consegue saber onde a criança se
encontra. O esquema é diabolicamente organizado, com minúcia e rigor. E daí decorre
todo o desenrolar de “Séance on a Wet Afternoon”.
Os
interiores criados por Forbes, a arquitectura da casa onde vive o casal, a
imposição das duas personagens chaves desta intriga e o magistral trabalho dos
actores, de um preciosismo rigoroso, a magnífica fotografia a preto e branco de
Gerry Turpin, que encerra em enquadramentos de invulgar envolvência este drama,
e a magistral partitura musical de John Barry, que acompanha subtilmente a
acção, transformam este título num dos momentos altos da cinematografia
britânica deste período. Como a época estava dominada pelo cinema social do “Free
Cinema” talvez tenha sido por isso que esta obra não se impôs como seria da
mais elementar justiça. Mas o decorrer dos anos não envelheceu o filme, e ela
resistiu estoicamente, sem uma ruga. Um belíssimo filme, angustiante e
doloroso.
Apesar
de o cineasta não ser um desconhecido e ter atrás de si já alguns filmes de
sucesso, como “Whistle Down the Wind” ou “The L-Shaped Room”, a verdade é que
foi difícil erguer a produção de “Séance on a Wet Afternoon”. Para o papel de
Myra chegaram a ser pensados (e até convidados) nomes como Margaret Lockwood,
Anne Bancroft ou Simone Signoret, que declinaram por várias razões. Chegou até
a pensar-se ser um homem, Alec Guinness ou Tom Courtenay, a vestir a roupa de
Myra Savage. Acabaria por ser Kim Stanley a escolhida e em boa hora. Nunca foi
uma vedeta de grande público, mas era uma actriz espantosa. Aqui voltou a
prová-lo. Richard Attenborough não estava de início pensado para a personagem
do marido, mas, para credibilizar comercialmente o projecto, aceitou o repto.
Ambos seriam nomeados para vários prémios internacionais (Kim Stanley para o
Oscar) e ganhariam alguns deles, tal como o próprio Bryan Forbes.
Curiosidade
suplementar. Em 2000, no Japão, o romance de Mark McShane voltaria a ser
adaptado ao cinema, “Korei”, de Kiyoshi Kurosawa.
À BEIRA DO ABISMO
Título original: Seance on a
Wet Afternoon
Realização: Bryan Forbes (Inglaterra,
1964); Argumento: Bryan Forbes, segundo romance de Mark McShane; Produção: Richard Attenborough,
Jack Rix, Bryan Forbes; Música: John Barry; Fotografia (p/b): Gerry Turpin;
Montagem: Derek York; Direcção artística: Ray Simm; Maquilhagem: Stuart
Freeborn, Barbara Ritchie; Guarda-roupa: Laurel Staffell; Assistentes de
realização: Christopher Dryhurst, Simon Relph; Departamento de arte: Peter
James, Jock Lyall, Alan Roderick-Jones; Som: Bill Daniels, George Fisher;
Companhias de produção: Beaver Films, Allied Film Makers (AFM); Intérpretes: Kim Stanley (Myra),
Richard Attenborough (Billy), Patrick Magee (Walsh), Marian Spencer (Mrs.
Wintry), Judith Donner (Amanda), Mark Eden (Mr. Clayton), Nanette Newman (Mrs.
Clayton), Gerald Sim (Beedle), Margaret Lacey, Marie Burke, Maria Kazan, Lionel
Gamlin, Godfrey James, Ronald Hines, Hajni Biro, Diana Lambert, Frank
Singuineau, Stanley Morgan, Maggie Rennie, Michael Lees, Arnold Bell, etc. Duração: 121 minutos; Distribuição em
Portugal: Zon-Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos.
BRYAN FORBES (1926-2013)
John
Theobald Clarke, conhecido por Bryan Forbes, nasceu a 22 de Julho de 1926, em
Stratford, Londres, Inglaterra, e viria a falecer a 8 de Maio de 2013, em
Virginia Water, Surrey, Inglaterra. O pai era caixeiro-viajante. Estudou na
West Hammersmith Secondary School, em Hammersmith, Middlesex e na Horncastle
Grammar School. Iniciou-se na BBC. Com Richard
Attenborough, Guy Green, Basil Dearden, Michael Relph e Jack Hawkins criou a
Allied Film Makers (AFM), em 1959, que co-produziu alguns títulos com a The Rank
Organisation. Fundou
igualmente com Richard Attenborough, o seu maior amigo, uma outra casa
produtora, Beaver Films Limited, que produziu alguns filmes importantes, como
“The Angry Silence” (1960), “Whistle Down the Wind” (1961) e “Seance on a Wet
Afternoon” (1964). Foi presidente do National Youth Theatre of Great Britain.
Durante algum tempo (1968-1971), dirigiu uma livraria em Virginia Water.
Distinguiu-se como actor, argumentista e realizador, mas, durante os últimos
anos da sua vida, atacado por esclerose múltipla que combateu com algum sucesso
durante trinta anos, foi sobretudo escritor, com duas autobiografias e vários
romances. Tinha uma colaboração regular na revista "The Spectator".
Em 2004 foi designado CBE (Commander of the Order of the British Empire) pela
sua contribuição para as Artes. Casado com as actrizes Constance Smith (1951 -
1955) e Nanette Newman (1955 - 2013), com dois filhos do último casamento, Emma
Forbes e Sarah Forbes.
Filmografia
Como realizador: 1961: Whistle Down the Wind (Os
Olhos Postos em Ti); 1962: The L-Shaped Room (O Quarto Indiscreto); Seance on a
Wet Afternoon (à Beira do Abismo); Of Human Bondage (Servidão Humana) (Ken
Hughes assina, mas antes Bryan Forbes e Henry Hathaway detiveram a realização);
1965: King Rat (Rei de um Inferno); 1966: The Wrong Box (A Fabulosa Troca dos
Caixões); 1967: The Whisperers (Vida Solitária); 1968: Deadfall (Queda Mortal);
1969: The Madwoman of Chaillot (A Louca de Chaillot); 1971: The Raging Moon
(Labirinto de Sentimentos); 1975: The Stepford Wives (Mulheres Perfeitas);
1976: The Slipper and the Rose: The Story of Cinderella (A História de
Cinderela); 1978: International Velvet (Sarah); 1980: Sunday Lovers (Os
Conquistadores de Domingo) (episódio An Englishman's Home); 1980: Play for Today
(TV), episódio Jessie; 1982: Better Late Than Never (Mais Vale Tarde do Que
Nunca); 1983: Philip Marlowe, Private Eye (TV), episódio The King in Yellow;
1984: The Naked Face (O Mistério de Um Rapto); 1990: The Endless Game (TV).
Bibliografia – romance:
Distant Laughter (1972), Slipper and the Rose (1976), International Velvet
(1978), Familiar Strangers (1979), The Rewrite Man (1983), The Twisted
Playground (1993), Partly Cloudy (1995), The Memory of All That (1999), The
Choice (2007), The Soldier's Story (2012); Não
ficção: Notes for a Life (1974), Ned's Girl: The Life of Edith Evans
(1977), That Despicable Race: History of the British Acting Tradition (1980) e
A Divided Life (1992).
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