segunda-feira, 8 de setembro de 2014

SESSÃO 45: 10 DE SETEMBRO DE 2014


ESPERANÇA E GLÓRIA (1987)

John Boorman nasceu em Londres, em 1933. Quando a II Guerra Mundial rebentou, tinha sete anos e passou grande parte da sua meninice sob os bombardeamentos nazis em terra inglesa. Por isso não será de estranhar que “Hope and Glory”, o filme que escreveu e realizou em 1987, seja em grande parte autobiográfico. Quando se diz “autobiográfico” não se quererá dizer que a personagem central da obra, Bill Rowan, percorra as mesmas peripécias que o próprio John Boorman viveu nessa época. Mas quer dizer de certeza que muito do que viveu por ali anda plasmado e que muitas das histórias narradas foram seguramente presenciadas e sentidas pelo autor. Assim se constrói a obra de arte que repesca experiências passadas e as recupera numa nova dimensão.
Este é um filme que nos fala da II Guerra Mundial vista pelos olhos de um rapazinho londrino. É certamente um dos mais belos e emocionantes filmes que aquele terrível conflito inspirou (e deve dizer-se que há muitos e vibrantes testemunhos ao longo da História do Cinema posterior a 1945). Bill Rowan é um jovem em idade escolar, deve andar entre os sete e os nove anos, e vamos conhecê-lo algum tempo antes de iniciada a II Guerra Mundial. O seu agregado familiar é uma característica família de pequena burguesia, vivendo num bairro social periférico de Londres, pai, mãe, e duas irmãs, uma mais velha, outra mais nova. Passeiam uma existência pacata, feliz na sua mediania, até que a guerra é declarada em Setembro de 1939 e os cidadãos são convidados a integrarem as fileiras das forças armadas para defenderem a pátria. O pai de Bill oferece-se com outros vizinhos, cientes de que fazem o que têm de fazer, mas que o conflito não durará muito. “Pelo Natal já estará tudo acabado”. Depois Inglaterra começa a ser bombardeada pelos aviões da Luftwaffe, a força aérea alemã, que, sobretudo durante a noite, bombardeou impiedosamente Londres e outras cidades inglesas. Esta ofensiva, que iria durar de forma continuada mais de oito meses, ficou conhecida pelo "Blitz de Londres" ou a Batalha de Inglaterra. Ingleses e alemães disputavam os céus, mas as vítimas eram sobretudo civis nas cidades, monumentos e casas arrasadas, avenidas e ruas esventradas, a população sem electricidade nem água, o caos na terra, com abrigos antiaéreos a serem construídos em cada rua para albergarem famílias em pânico quando nuvens de aviões com a cruz gamada nas asas sobrevoavam e despejavam milhares de bombas sobre as cidades. Os incêndios transformavam os bairros em fogueiras gigantescas, com bandas sonoras de horror. Segundo os historiadores, chegou a haver 57 noites consecutivas de bombardeamentos. Só abrandaram em meados de 1941.


Bill olha para o início da guerra, junto da mãe e das irmãs, com o olhar de um miúdo que sonha com as aventuras vistas no cinema, com heróis como Hopalong Cassidy, que era muito popular durante as décadas de 30 e 40. Recria o conflito com os seus soldadinhos de chumbo, colecciona fragmentos de granada, vibra com o avião nazi que cai perto de casa, com o piloto a ser salvo por paraquedas, extasia-se com os balões que sobrevoavam a zona, integra-se num grupo que brinca no meio das ruínas dos prédios vizinhos, vai descobrindo a vida e a morte, as alegrias e as dores do crescimento, excita-se com a perspectiva de espreitar para o interior das cuecas das miúdas e assiste com redobrada curiosidade às cenas de sexo da irmã mais velha com o namorado soldado que visita a casa pela calada da noite. Exulta quando a escola é atingida durante a noite e sabe, na manhã seguinte, que não há aulas. O pai, que fazia a guerra numa repartição, dactilografando documentos, vem a casa uma vez por outra, até que um dia a sua casa também é atingida e os seus soldadinhos desaparecem numa amálgama de chumbo sem forma. Nessa altura, a família afasta-se de Londres e vai viver com um avô, numa zona idílica da província.
O que o filme oferece de extraordinário é essa sensação de verdade, de sentimentos vividos, de acontecimentos únicos que só a experiência permite narrar com tamanha emoção, sem demagogias ou sentimentalismos fáceis, apenas com o dramatismo distanciado de quem não tem ainda a percepção de todo o horror. John Boorman é um director delicado, sensível que sabe captar o essencial, por vezes um pormenor, noutros casos um desenlace trágico, mantendo sempre o pudor de quem não se quer aproveitar da manipulação do espectador. Os actores são magníficos, dirigidos com mão de mestre e o filme, que aborda o horror mais absurdo, fá-lo com uma elegância e um virtuosismo que, só por si, é uma demonstração de que a monstruosidade não ganhará. Sebastian Rice Edwards é um Bill magnífico, Sarah Miles uma mãe doce e compreensiva, Sammi Davis é a sedenta filha mais velha, David Hayman é o discreto pai, e o fabuloso Ian Bannen o avô. Excelente a fotografia a cores de Philippe Rousselot, mas todo o filme é tecnicamente perfeito e artisticamente uma preciosidade que testemunha com justeza o dia-a-dia de um país assombrado pelos bombardeamentos.
“Esperança e Glória” ganhou diversos prémios e outras tantas recompensas nas mais diversas manifestações. Foi nomeado para cinco Oscars: Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Argumento Original, Melhor Fotografia e Melhor Direcção Artística, ganhou o Globo de Ouro para Melhor Filme (comédia ou musical), e John Boorman foi nomeado para Melhor Argumento e Melhor Realização. Nos BAFTAS ganhou o de Melhor Actriz Secundária, para Susan Wooldridge, e foi nomeado para mais 12 categorias, fazendo quase o pleno. E muitas outras foram as nomeações e os galardões arrecadados para recompensar esta obra. John Boorman havia sido convidado para dirigir “Atracção Fatal”. Preferiu realizar, produzir e escrever “Hope and Glory”. Boa escolha.


ESPERANÇA E GLÓRIA
Título original: Hope and Glory
Realização: John Boorman (Inglaterra, 1987, EUA); Argumento: John Boorman; Produção: John Boorman, Michael Dryhurst, Jake Eberts, Edgar F. Gross; Música: Peter Martin; Fotografia (cor):  Philippe Rousselot; Montagem: Ian Crafford; Casting: Mary Selway; Design de produção: Anthony Pratt; Direcção artística: Don Dossett; Decoração:  Joanne Woollard; Guarda-roupa:  Shirley Russell; Maquilhagem: Joan Carpenter, Anna Dryhurst; Assistentes de realização: Andy Armstrong, Michael Dryhurst, Melvin Lind; Departamento de arte: George Ball, Ted Michell, Syd Nightingale, Gary Tomkins;  Som: Don Brown, Ron Davis, Peter Handford, John Hayward, Paul Smith, John Stevenson; Efeitos especiais: Phil Stokes, Martin Gutteridge; Efeitos visuais: Alan Church; Companhias de produção: Columbia Pictures Corporation, Nelson Entertainment, Goldcrest Films International, Davros Films; Intérpretes: Sebastian Rice-Edwards (Bill Rowan), Geraldine Muir (Sue Rowan), Sarah Miles (Grace Rowan), David Hayman (Clive Rowan), Sammi Davis (Dawn Rowan), Derrick O'Connor (Mac), Susan Wooldridge (Molly), Jean-Marc Barr (Coronel Bruce Carrey), Ian Bannen (avô George), Annie Leon (avó), Jill Baker, Amelda Brown, Katrine Boorman, Colin Higgins, Shelagh Fraser, Gerald James, Barbara Pierson, Nicky Taylor, Jodie Andrews, Nicholas Askew, Jamie Bowman, Colin Dale, David Parkin, Carlton Taylor, Sara Langton, Imogen Cawrse, Susan Brown,  Charley Boorman, Peter Hughes, Ann Thornton, Andrew Bicknell, Christine Croshaw, William Armstrong, Arthur Cox, John Boorman (velho Bill, narrador), Neville Chamberlain (arquivo), Graham Cole, Vic Flick, King George VI (arquivo), etc. Duração: 113 minutos; Distribuição em Portugal: inexistente; DVD: Sony; ; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 25 de Março de 1988.

JOHN BOORMAN (1933 - )
John Boorman nasceu a 18 de Janeiro de 1933 , em Londres, Inglaterra. Estudou numa escola católica, Salesian Order, trabalhou numa lavandaria, depois iniciou-se como crítico de cinema numa revista feminina e numa rádio, antes de começar a trabalhar na delegação da BBC em Bristol. Na realização a estreia dá-se no documentarismo, “Six Days to Saturday” e “Citizen 63” (1963) ou“The Newcomers” (1964). O produtor David Deutsch chama-o para dirgir uma longa metragem que procura responder ao sucesso de  “A Hard Day's Night”, de Richard Lester, com “Catch Us If You Can” (1965), mas The Dave Clark Five não eram os Beatles. Não esmoreceu com o fracasso, e Lee Marcin leva-o para Hollywood onde assina um thriller brilhante “Point Blank” (1967), passado grande parte em Alcatraz, que o lança internacionalmente. Segue-se um conjunto de filmes magníficos que organizam uma filmografia não muito nemerosa mas sempre interessante: “Hell in the Pacific” (1968), “Leo the Last” (1970), “Deliverance” (1972), “Zardoz” (1974), “Exorcist II: The Heretic” (1977), “Excalibur” (1981), “The Emerald Forest” (1985), “Hope and Glory” (1987) “Beyond Rangoon” (1995) ou “The Tailor of Panama” (2000). São várias as distinções recebidas ao longo da carreira, com cinco nomeações para o Oscar, três em “Esperança e Glória”, duas em “Fim de Semana Alucinante”. John Boorman vive actualmente em Annamoe, na República da Irlanda. Casado com Christel Kruse.

Filmografia
Como realizador: 1963: Six Days to Saturday (documentário, curta-metragem); 1963: Citizen 63 (série de TV documental); 1964: The Newcomers (série de TV); 1965: Catch us if you can; 1966: Sunday Night (série de TV documental; 1 episódio “The Quarry: Portrait of a Man as a Paralysed Artist”); 1967: Point Blank (À Queima Roupa); 1968: Hell in the Pacific (Duelo no Pacífico); 1970: Leo the Last; 1972: Deliverance (Fim-de-Semana Alucinante); 1974: Zardoz (Zardoz); 1977: Exorcist II: The Heretic (O Exorcista II: O Herege); 1981: Excalibur (Excalibur); 1985: The Emerald Forest (A Floresta Esmeralda); 1985: Journey Into Light (documentário); 1987: Hope and Glory (Esperança e Glória); 1990: Where the Heart is; 1991: I Dreamt I Woke Up (curta-metragem); 1995: Lumière et Compagnie (curta-metragem); 1995: Beyond Rangoon (Rangoon); 1995: Picture Windows (mini série de TV; episódio Two Nudes Bathing); 1998: The General (O General); 1998: Lee Marvin: A Personal Portrait by John Boorman (TV, documental); 2001: The Tailor of Panama (O Alfaiate do Panamá); 2003: Country of My Skull (Um Amor em África); 2006: The Tiger's Tail (A Cauda do Tigre); 2009: Timeshift (série de TV documental; 1 episódio “Six Days to Saturday”); 2014: Queen and Country.

SARAH MILES (1941 - )
Sarah Miles nasceu a 31 de Dezembro de 1941, em Ingatestone, no Essex, Inglaterra. Aos quinze anos entrou para a Real Academia de arte Dramática de Londres e estreia-se no cinema, ao lado de Terence Stamp em “Term of Trial”, de Peter Glenville, depois de uma curta experiência na TV e no teatro. Rapidamente chama a atenção para si, em “The Servant”, de Joseph Losey, e “Blow-Up”. O sucesso internacional chega com “Ryan's Daughter”, de David Lean, sobre argumento do dramaturgo inglês Robert Bolt, com quem irá casar por duas vezes e que a irá dirigir em “Lady Caroline Lamb”, obra escrita e realizada por Bolt. Este é o melhor período da sua carreira, protagonizando obras de qualidade onde o seu trabalho sobressai. A partir da década de 80, o seu percurso é mais instável, acabando por surgir quase só em séries de televisão. Teve uma vida amorosa atribulada. Casa com Robert Bolt em 1967 e o casamento dura até 1975, mas voltarão a casar em 1988, relação que se manterá até à morte do escritor, em 1995. Pelo meio conhecem-se muitas aventuras mais ou menos demoradas (Robert Mitchum, Steven Spielberg, David Copperfield, entre outros). Irmã do realizador Christopher Miles, que a dirigiu em “Priest of Love”, biografia de D. H. Lawrence (1981). Ecreveu alguns livros de certa forma autobiográficos, e planeia uma sequela de “A Filha de Ryan”. Foi nomeada para o Oscar, o BAFTA e o Globo de Ouro, na categoria de Melhor Actriz, em 1971, por “Ryan's Daughter”.

Filmografia

Como actriz: 1961: Deadline Midnight (TV; episódio “Manhunt”); 1962: Term of Trial (Final de Julgamento), de Peter Glenville; 1963: The Ceremony (A Cerimónia), de Laurence Harvey; 1964: The Servant (O Criado), de Joseph Losey; The Six-Sided Triangle (curta-metragem); ITV Play of the Week (TV; episódio “The Rehearsal”); 1965: Those Magnificent Men in Their Flying Machines (Os gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras), de Ken Annakin; 1965: I Was Happy Here (Regresso ao Passado), de Desmond Davis; 1967: Blow-Up (Blow-Up - História de Um Fotógrafo), de Michelangelo Antonioni; 1970: Ryan's Daughter (A Filha de Ryan), de David Lean; 1972: Lady Caroline Lamb (Lady Caroline), de Robert Bolt; 1973: The Man Who Loved Cat Dancing (O Homem que Amou Cat Dancing), de Richard C. Sarafian; 1973: The Hireling (A Lady e o Motorista), de Alan Bridges; 1974: Great Expectations (Grandes Esperanças), de Joseph Hardy (TV); 1975: Pepita Jiménez, de Rafael Moreno Alba; Requiem for a Nun (TV); 1976: The Sailor Who Fell from Grace with the Sea, de Lewis John Carlino; 1976: Dynasty, de Lee Philips; 1978: The Big Sleep (O Sono Derradeiro), de Michael Winner; 1981: Priest of Love (Sacerdote do Amor), de Christopher Miles; 1981: Venom (Perigo na Sombra), de Piers Haggard; 1983: Walter and June, de Stephen Frears; 1984: Ordeal by Innocence (A Forca para Um Inocente), de Desmond Davis; 1985: Steaming, de Joseph Losey; 1986: Harem (TV); 1987: Hope and Glory (Esperança e Glória), de John Boorman; Queenie de Larry Peerce (TV); White Mischiefde (Adeus, África), de Michael Radford; 1990: A Ghost in Monte Carlo (TV); 1992: Dotkniecie reki  ou The Silent Touch, de Krzysztof Zanussi; 1994: Dandelion Dead, de Mike Hodges (TV); 2001: I Giorni dell'Amore e dell'Odio, de Claver Salizzato; 2001: Jurij, de Stefano Gabrini; 2003: The Accidental Detective, de Vanna Paoli; 2004: Hercule Poirot (TV, episódio “The Hollow”). 

Sem comentários:

Enviar um comentário