AQUELE INVERNO EM VENEZA (1973)
Curioso.
Não há muito tempo a revista inglesa “Time Out” efectuou um inquérito entre
elementos ligados à indústria cinematográfica britânica para saber quais os 100
melhores filmes de sempre. Entre realizadores, produtores, técnicos, actores,
críticos e jornalistas consultados os resultados foram nalguns casos esperados,
outros surpreendentes. Do computo geral resultou que o filme mais votado foi
“Don't Look Now”, de Nicolas Roeg. (pode consultar toda a lista em http://www.timeout.com/london/film/100-best-british-films-the-full-list). Não que a obra não mereça
uma atenção muito especial, mas daí a considerá-la a melhor de sempre do cinema
inglês, vai alguma distância.
"Don't
Look Now" data de 1973 e inscreve-se num estranho e inquietante grupo de
filmes de terror psicológico de que "The Excorcist" é o paradigma.
Mas existem grandes diferenças, ainda que se possam notar igualmente algumas semelhanças.
“O Exorcista” vive muito da qualidade e da novidade dos seus efeitos especiais
na criação do horror e do impacto junto das plateias. “Aquele Inverno em
Veneza”, pelo contrário, joga tudo na criação de atmosferas densas e pesadas,
de um clima extremamente inquietante, sem recurso a muitos efeitos especiais.
Tudo é dado através das situações criadas, das sugestões lançadas a cada
imagem, da atmosfera que cenários naturais e a belíssima fotografia num
polícromo colorido dominado por tons fortes e um vermelho sangue omnipresente
geram, e que uma banda sonora inspirada sustenta. Depois, a elegância da
realização de Nicolas Roeg é indiscutível e seria mais associada a uma aventura
romântica nos belos canais de Veneza do que propriamente a uma história de
terror. Há ainda um outro aspecto a considerar, e que na época era
relativamente inédito no cinema: toda a trama roda em redor de uma criança
morta em circunstâncias trágicas, o que legitima uma adesão emocional forte por
parte do espectador.
Logo na
sequência inicial, passada em Inglaterra, a filha de John e Laura Baxter morre
afogada. Compreensivelmente o pesar abate-se sobre o casal. Tempos depois,
John, que é um brilhante restaurador de antiguidades, insta-se em Veneza,
juntamente com a mulher. Ambos procuram ultrapassar o trauma, enquanto John
trabalha na recuperação de uma igreja católica. O outro filho do casal, que
assistira ao acidente que vitimara a irmã, ficara numa escola inglesa. Interno.
Enquanto
as obras de recuperação vão prosseguindo o seu curso normal, o casal viaja por
Veneza, o que permite obter algumas das imagens mais impressionantes desta
cidade, oferecidas pelo cinema (e são muitas, e muito boas). Mas vão igualmente
conhecendo algumas pessoas, certamente bizarras, como é o caso de duas
velhinhas, duas irmãs escocesas idosas, Heather e Wendy, que dizem manter
ligações ao “além”, o que desperta na mãe o desejo de saber algo mais sobre a
filha. Tanto mais que uma delas afirma ter visto a criança com os pais num
restaurante. Por outro lado, vários crimes vão surgindo na cidade, o que mais
adensa a atmosfera sombria, misteriosa, inquietante. Claro que num filme deste
tipo não se pode ir muito mais além na abordagem da história, e o que tentamos
é sobretudo esboçar o tom em que a mesma decorre e procurar integrar o
espectador nesse desígnio.
Partindo
de um romance de Daphne du Maurier, que tantas adaptações tem dado ao cinema, e
de quem Alfred Hitchcock era um especial apreciador, tanto que só à sua conta
adaptou “A Pousada da Jamaica”, “Rebeca” e “Os Pássaros”, logo aí se percebe o
estilo do fantástico proposto, que vive muito da sugestão e do sobressalto
psicológico. O que se vinca ainda mais nesta obra pelos processos utilizados
pelo seu realizador. A fotografia de Anthony B. Richmond, além de nos
presentear com imagens invulgarmente perturbantes de uma Veneza absolutamente
notável como cenário natural, ainda joga admiravelmente com as cores, criando
um clima de pintura antiga sulcada por rastos de um vermelho sangue sempre
alarmante, insinuando o perigo ou mesmo a morte. O recurso a objectos que
apontam para flashback é outra característica desta obra. Também a música de
Pino Donaggio contribui em muito para esse lado alarmante que continuamente nos
sufoca. De resto a montagem de Graeme Clifford é ela também magistral,
sobretudo na forma como conjuga diversas acções, em tempos e locais
diferenciados. Há quem afirme que este filme possui uma das, ou mesmo “a mais
bela cena de amor do cinema”. Acontece entre Julie Christie e Donald Sutherland
e possui um erotismo feroz, sem nunca cair na vulgaridade, e a montagem em
paralelo com a preparação da manhã seguinte do casal é magnificamente
conseguida. Deve referir-se ainda que tanto Julie Christie como Donald
Sutherland estão em momentos soberbos das suas carreiras e a conjugação dos
dois é admirável (aliás falou-se muito numa ligação que se estabelecera entre
ambos durante as filmagens). Foi o próprio Nichoas Roeg quem afirmou que
gostava da combinação de um actor canadiano com uma actriz inglesa. Para ele,
mais do que um filme de suspense psicológico, tratava-se de uma obra sobre o
amor e sobre um casal que se interroga sobre a vida, a morte e o futuro de
ambos. Nesse aspecto, "Don't Look Now" “it´s a hell
of a movie”.
AQUELE INVERNO EM VENEZA
Título original: Don't Look Now
Realização: Nicolas Roeg (Inglaterra,
Itália, 1973); Argumento: Allan Scott, Chris Bryant, segundo história de Daphne
Du Maurier; Produção: Peter Katz, Frederick Muller, Anthony B. Unger; Música:
Pino Donaggio; Fotografia (cor): Anthony B. Richmond; Montagem: Graeme
Clifford; Casting: Miriam Brickman, Ugo Mariotti; Guarda-roupa: Marit Allen, Anna Maria Feo, Andrea Galer;
Direcção artística: Giovanni Soccol; Maquilhagem: Giancarlo Del Brocco, Maria
Luisa Garbini, Barry Richardson; Direcção de Produção: Franco Coduti, Tim
Hampton; Assistentes de realização:
Francesco Cinieri; Departamento de arte: Francesco Chianese; Som: Peter
Davies, Rodney Holland; Companhias de produção: Casey Productions Ltd.,
Eldorado Films, D.L.N. Ventures; Intérpretes:
Julie Christie (Laura Baxter), Donald Sutherland (John Baxter), Hilary Mason
(Heather), Clelia Matania (Wendy), Massimo Serato (Bispo Barbarrigo), Renato
Scarpa (Inspector Longhi), Giorgio Trestini, Leopoldo Trieste (gerente de
hotel), David Tree, Ann Rye, Nicholas Salter, Sharon Williams, Bruno Cattaneo,
Adelina Poerio, etc. Duração: 110
minutos; Distribuição em Portugal: Cine Digital; Classificação etária: M/ 16
anos; Data de estreia em Portugal:14 de Junho de 1974.
NICOLAS ROEG (1928 - ?)
Nicolas
Jack Roeg nasceu em 15 de Agosto de 1928, em Londres, Inglaterra. Quando se
estreou na realização, em 1970, com “Performance” já tinha atrás de si uma
carreira na indústria do cinema com 23 anos, como montador e director de fotografia,
entre outros ofícios. Começara em 1947 e passara por obras de David Lean,
“Lawrence da Arábia” (1962), de Roger Corman, “A Máscara da Morte Vermelha”
(1964), tendo trabalhado na fotografia de filmes de François Truffaut (Grau de
Destruição, 1966), John Schlesinger (Longe da Multidão, 1967) ou Richard Lester
(Petúlia, 1968). “Performance” foi um sucesso, a que se seguiram outros, como
(Walkabout, 1971), Aquele Inverno em Veneza (1973) ou O Homem Que Veio do
Espaço (1976). Casado com Susan Stephen (1957 - 1977), Theresa Russell (1986 -
?) e Harriet Harper (2005 até ao presente. )
Filmografia
Como realizador: 1970: Performance,
co-realizado com Donald Cammell; 1971: Walkabout; 1972: Glastonbury Fayre
(documentário); 1973: Don't look Now (Aquele Inverno em Veneza); 1976: The Man
who Fell to Earth (O Homem Que Veio do Espaço); 1980: Bad Timing (Fora de
Tempo); 1984: Eureka; 1985: Insignificance (Uma Noite Inesquecível); 1986:
Castaway; 1987: Aria (Aria) (episódio "Un Ballo in Maschera"); 1988: Track
29 (Armadilha Sentimental); 1989: Sweet Bird of Youth (TV); 1990: The Witches;
1991: Cold Heaven; 1993: Heart of Darkness (Caminho das Trevas) (TV); 1993: The
Young Indiana Jones Chronicles (Indiana Jones - Crónicas da Juventude) (TV) (1
episódio - Paris, October 1916); 1995: Hotel Paradise (curta-metragem); Two
Deaths; Full Body Massage (TV); 1996: Samson and Delilah (TV); 2000: The Sound
of Claudia Schiffer (curta-metragem); 2007: Puffball (Filhos do Oculto); 2007
The Adventures of Young Indiana Jones: Demons of Deception (vídeo) (episódio "Paris").
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