A CASA DA FELICIDADE (2000)
Edith Wharton,
escritora norte-americana que atravessou o final do séc. XIX e viria a falecer
em França, em 1937, parece ter sorte com a adaptação
de obras suas ao cinema. Depois de um
excelente “A Idade da Inocência”, que Martin Scorsese nos deu em
1993, temos também outra soberba versão de um romance seu passado ao
cinema, desta feita a sua segunda obra de fôlego, “A Casa da Felicidade”,
escrita no
início do século xx. O arranque é notável, de sugestão, de intensidade erótica, de contenção formal, de elegância estilística, de economia de meios: Lilly Bart, numa estação de caminhos-de-ferro, encontra Selden, seu secreto amor. A troca
de olhares, o diálogo carregado de subtendidos, os movimentos de personagens e a colocação e deslocação da câmara, tudo faz desta cena um momento de particular significado, que irá ser acentuado, tempos depois, numa discreta cena de amor em Bellomont, que é todavia um dos
mais eróticos
momentos do cinema contemporâneo. Dois
lábios que se tocam, num esboço
de beijo, dois desejos
que se cruzam e se bloqueiam. De
resto, esta é a história
de uma mulher que vive em Nova lorque, em 1905, que ama um homem, Selden,
mas que por força de alguns erros próprios e da intolerância
de uma sociedade mesquinha vai caindo até ao desespero.
Tendo
como pano de fundo uma sociedade em transformações profundas, este filme é um
retrato admirável de uma mulher a quem os preconceitos consomem. Proscrita
pelos bem pensantes da época, Lily
é assediada
por anafados
capitalistas,
que a querem conquistar
como troféu de caça. Mas
resiste com
uma dignidade muito
pessoal. Desce até ao precipício, mostrando as vicissitudes de uma educação
voltada sobretudo para o casamento. Um belíssimo filme, económico na
reconstituição física da época, mas com um enorme talento e sensibilidade a
desenhar o pulsar de um período olhado por dentro, impondo personagens e
situações.
Terence
Davies, realizador inglês cuja
obra se inicia na década
de 70 mas que rodou poucos títulos,
assina filmes de uma qualidade e interesse acima da média: “Vozes Distantes”, “Vidas Suspensas”, “Aqueles Longos
Dias” e “A Bíblia
de Néon”. Terence Davis
não é um cineasta fácil, tentado
por qualquer contacto ardiloso com
o grande público. Os seus filmes são discretos e intimistas, ganham
em cumplicidade com o público
o que perdem em
espectacularidade. “A Casa da
Felicidade” é, todavia,
um dos seus melhores exemplos. De uma beleza formal e plástica por
vezes sufocante, Terence Davis mantém a sua câmara num rigor de observação
pouco usual nos dias que correm e faz desta obra um momento imperdível de
justeza psicológica e de rigor narrativo.
Admirável
e surpreendente o trabalho de Gillian Anderson (“Ficheiros Secretos”) e de Eric
Stotz.
A CASA DA FELICIDADE
Título original: The
House of Mirth
Realização: Terence Davies
(Inglaterra, França, Alemanha, EUA, 2000); Argumento: Terence Davies, segundo
romance de Edith Wharton ("The House of Mirth"); Produção: Pippa
Cross, Bob Last, Olivia Stewart, Alan J. Wands;
Música (não original): Heather Bownass, Terry Davies, Isobel Griffiths,
Adrian Johnston, Bruce White, Adrian Johnston; Fotografia (cor): Remi
Adefarasin; Montagem: Michael Parker; Casting: Kerry Barden, Billy Hopkins,
Suzanne Smith; Design de produção: Don Taylor; Direcção artística: Diane
Dancklefsen; Decoração: John Bush; Guarda-roupa:
Monica Howe; Maquilhagem: Eva Marieges Moore, Dianne Millar, Christine
Powers, Jan Harrison Shell, Meg Speirs; Direcção de Produção: Wendy Broom, Tony Hood, Sarah Lee;
Assistentes de realização: William Booker, Sarah Lee, Nanna Mailand-Hansen, Guy
Travers; Departamento de arte: Alan Bailey, Jo Graysmark, Barry Nelson, Danny
Sumsion; Som: Tony Cook, Paul Hamblin, Catherine Hodgson; Efeitos especiais:
Ricky Farns, Stuart Murdoch; Efeitos visuais: John Paul Docherty, Tim Ollive,
Susi Roper; Companhias de produção: Arts Council of England, Diaphana Films ,
FilmFour, Granada Film Productions, Kinowelt Filmproduktion, National Lottery,
Progres Film Distribution, The Scottish Arts Council, Showtime Networks, The Glasgow Film Fund,
Three Rivers Production; Intérpretes:
Gillian Anderson (Lily Bart), Dan Aykroyd (Augustus 'Gus' Trenor), Eleanor Bron
(Mrs. Julia Peniston), Terry Kinney (George Dorset), Anthony LaPaglia (Sim
Rosedale), Laura Linney (Bertha Dorset), Jodhi May (Grace Julia Stepney),
Elizabeth McGovern (Mrs. Carry Fisher), Eric Stoltz (Lawrence Selden), Penny
Downie (Judy Trenor), Pearce Quigley (Percy Gryce), Helen Coker, Mary MacLeod,
Paul Venables, Serena Gordon, Lorelei King, Linda Marlowe, Anne Marie Timoney,
Clare Higgins, Ralph Riach, Brian Pettifer, Philippe De Grossouvre, Trevor Martin, David Ashton, etc.
Duração: 135 minutos; Distribuição
em Portugal: LNK; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em
Portugal: 11 de Maio de 2001.
TERENCE DAVIES (1945 - )
Terence
Davies nasceu a 10 de Novembro de 1945, em Kensington, Liverpool, Lancashire,
Inglaterra. A sua família era católica, com uma mãe muito religiosa, mas muito
cedo Terence se declarou ateu. Depois de passar por vários pequenos empregos,
deixou Liverpool e matriculou-se na Coventry Drama School, em Londres. Escreveu
e realizaou uma curta autobiográfica, “Children” (1976), sob os auspícios do
BFI Production Board. Cursou depois a National Film School, onde realizou
“Madonna and Child” (1980), completando a trilogia com “Death and
Transfiguration” (1983), onde imaginava a sua morte. “The Terence Davies
Trilogy” ganhou vários prémios em festivais. Daí em diante, a sua obra é rara,
recusando todas as concessões, mas de grande significado, sendo considerada uma
das de maior importância no contexto do moderno cinema inglês. Há quem a ele se
refira como “Britain's greatest living filmmaker”. “Distant Voices, Still
Lives” e “The Long Day Closes” são dois marcos, com muita influência
autobiográfica e jogando amiúde com a memória. Em 2002, o British Film
Institute e a revista “Sight & Sound” organizaram um inquérito sobre os
melhores filmes dos últimos 25 anos e “Distant Voices, Still Lives” apareceu
colocado em nono lugar. Jean-Luc Godard, que não gostava particularmente de
cinema inglês, considerou-o uma excepção “magnífica”.
“The Neon Bible” e “The
House of Mirth”, adaptando romances de John Kennedy Toole e Edith Wharton,
foram dois outros sucessos. “The Deep Blue Sea” é o seu último grande triunfo.
Numa revelação intimista confessou: “Não gosto de ser gay. Isso arruinou a minha
vida. Sou um celibatário, mas sê-lo ia mesmo que não fosse gay, pois não tenho
uma boa aparência; porque estaria alguém interessado em mim? Ninguém estaria. O
meu trabalho é o meu substituto”. Coleccionou até hoje um invulgar número de
prémios e distinções.
Filmografia:
Como realizador: 1976: Children (curta-metragem);
1980: Madonna and Child (curta-metragem); 1983: Death and Transfiguration
(curta-metragem); 1984: The Terence Davies Trilogy (antologia dos três títulos
anteriores); 1988: Distant Voices, Still Lives (Vozes Distantes, Vidas
Suspensas); 1992: The Long Day Closes (Aqueles Longos Dias); 1995: The Neon
Bible (A Bíblia de Neon); 2000: The House of Mirth (A Casa da Felicidade);
2008: Of Time and the City (documentário); 2011: The Deep Blue Sea (O Profundo
Mar Azul); 2014: Sunset Song (em rodagem).
Sem comentários:
Enviar um comentário