UMA GOTA DE MEL (1961)
“A
Taste of Honey”, filme de 1961, assinado por Tony Richardson, adapta uma peça
teatral das mais célebres entre as que saíram do movimento dos “Angry Young
Men”. Apesar da designação do movimento, Shelagh Delaney é uma mulher que
escreveu esta peça quando tinha apenas 18 anos, tendo a mesma sido estreada em
1958, com enorme sucesso.
A peça
e o filme passam-se em Salford, Lancashire, terra natal da dramaturga, e chama
a primeiro plano um grupo de personagens nada habitual de se ver no cinema
inglês dos anos anteriores. Jo (Rita Tushingham) é uma jovem estudante, sem pai
que se veja e a viver com uma mãe (Dora Bryan) que a deixa à solta e se vai
entretendo com alguns homens que a convencem que não está a envelhecer. Entre
eles, Peter Smith (Robert Stephens), que acaba mesmo por casar com Helen, o que
deixa a filha desta ainda mais à deriva. Depois de uma história de uma noite,
com um marinheiro de cor, Jo engravida, e só encontra conforto na companhia de
Geoffrey Ingham (Murray Melvin), um jovem homossexual, delicado e sensível, que
a acolhe e acarinha.
Esta
sucinta resenha permite desde logo mostrar a originalidade e a novidade, algo
provocadora, de “Uma Gota de Mel”. Famílias que hoje em dia se diriam
disfuncionais, mães e pais separados, filhas deixadas ao Deus dará, relações
sexuais pré-matrimoniais, gravidez solteira, abordagem do tema do aborto,
homossexualidade, enfim… um verdadeiro relatório de temas tabus. De atmosferas
sociais que se diriam pouco apetecíveis em cinema, de personagens proibidas e,
sobretudo, uma abordagem sem artificialismo, desencantada, para não se dizer
mesmo desesperada. Estas figuras evoluem por cenários totalmente
desromantizados, a juventude não é observada como um tempo de esperança e de
futuro, o amor quando existe é preconceituosamente olhado de revés, a candura e
a inocência são maltratadas, o calculismo pragmático parece tomar conta das
relações dos adultos… Este não é um universo apetecível e, todavia, Tony
Richardson apresenta-no-lo com uma sinceridade e autenticidade tocantes. Filmes
como estes rasgam uma cortina perante os olhos dos espectadores ingleses (e
mundiais), revelando realidades escondidas, personagens esquecidas, rostos
banais, mas de uma formosura inatacável. Rita Tushingham, por exemplo, é uma
revelação espantosa, sem a beleza arquétipa das “actrizes de cinema”, ela é uma
rapariga retirada da rua, sem retoque nem maquilhagem, mas densa, difícil de
arquivar num estereótipo tradicional, multifacetada, viva. O mesmo se pode
dizer de Murray Melvin, que compõe um dos mais apaixonantes retratos de
homossexuais de toda a história do cinema, jogando com um rigor e uma
austeridade de processos invulgares.
Esta
evocação dos anos 60 em Lancashire, nas margens do rio Irwell, é mais uma
aprendizagem da vida, a dolorosa entrada na maturidade, com tudo o que isso
representa de dor e de desilusão, mas igualmente com a descoberta de algumas
alegrias. “A Taste Of Honey” é, por outro lado, um típico exemplo do “kitchen
sink drama” que chama a atenção para vidas marginalizadas, complexas, bastante
afastadas dos dramas habituais da burguesia bem instalada na vida.
UMA GOTA DE MEL
Título
original: A Taste of Honey
Realização:
Tony Richardson (Inglaterra, 1961); Argumento: Tony Richardson, Shelagh
Delaney, segundo peça teatral desta última; Produção: Tony Richardson; Música:
John Addison; Fotografia (p/b): Walter Lassally; Montagem: Antony Gibbs;
Direcção artística: Ralph W. Brinton; Guarda-roupa: Sophie Devine, Barbara
Gillett; Maquilhagem: George Frost, Bill Griffiths; Direcção de Produção: Leigh
Aman, Roy Millichip; Assistentes de realização: Peter Yates; Departamento de
arte: Ted Marshall; Som: Don Challis,
Roy Hyde, Charles Poulton; Companhia de produção: Woodfall Film Productions; Intérpretes: Dora Bryan (Helen), Robert
Stephens (Peter Smith), Rita Tushingham (Jo), Murray Melvin (Geoffrey Ingham),
Paul Danquah (Jimmy), Michael Bilton, Eunice Black, David Boliver, Margo
Cunningham, A. Goodman. John Harrison,
Veronica Howard, Moira Kaye, Graham Roberts, Valerie Scarden, Rosalie Scase,
Herbert Smith, Jack Yarker, Hazel Blears, Linda Lewis, Janet Rugg, etc. Duração: 100 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Edivisa;
Classificação etária: M/ 12 anos.
RITA TUSHINGHAM (1942 - )
Rita Tushingham
nasceu a 14 de Março de 1942, em Garston, Liverpool, Lancashire, Inglaterra.
Estudou numa escola religiosa, La Sagesse, em Liverpool, cidade onde haveria de
se estrear no teatro, na Liverpool Playhouse. Já como profissional apareceu em
inúmeras peças de teatro durante a década de 60, na English Stage Company, no
Royal Court Theatre: “The Changeling” (1961), “The Kitchen” (1961), “A
Midsummer Night's Dream” (1962), “Twelfth Night” (1962), ou “The Knack” (1962).
Descoberta por Tony Richardson, que a estreou no cinema, em “A Taste of Honey”,
em 1961, uma adaptação da peça teatral de Shelagh Delaney, uma das mais
características do “kitchen sink drama”. Esta obra ganharia diversos prémios
nos British Film Awards, entre os quais o de Melhor Actriz Revelação. Tushingham tornou-se rapidamente um dos símbolos do
“Free Cinema” e lançar-se-ia numa carreira que reuniu títulos marcantes: “Girl
with Green Eyes” (1963), “The Leather Boys” (1964),”The Knack …and How to Get
It” (1965), “Doctor Zhivago” (1965), “The Trap” (1966), “Smashing Time” (1967),
“The Bed Sitting Room” (1969) ou “The 'Human' Factor” (1975), “Being Julia”
(2004).
Casada
com o fotógrafo Terry Bicknell (1962 - ?), de quem teve duas filhas, Dodonna
Bicknell e Aisha Bicknell. Esta última esteve muito doente com cancro, em 2005,
quando tinha 33 anos, mas salvou-se, o que levou mãe e filha a participarem, a
partir daí, em campanhas de sensibilização sobre o cancro, tornando-se
activistas. Divorciada, casaria com o director de fotografia iraquiano Ousama
Rawi (? - 1996), indo viver para o Canadá durante uma longa temporada. Em
finais dos anos 90, passou a dividir-se entre Londres e a Alemanha, onde vive
com o escritor Hans-Heinrich Ziemann.
Filmografia
1961: A Taste of Honey (Uma Gota de Mel),
de Tony Richardson; 1963: A Place to Go, de Basil Dearden; 1964: The Leather
Boys, de Sidney J. Furie; Girl with Green Eyes, de Desmond Davis; The Human
Jungle (TV); 1965: The Knack ...and How to Get It (Lições de Sedução), de
Richard Lester; Doctor Zhivago (Doutor Jivago), de David Lean; 1966: The Trap
(A Armadilha), de Sidney Hayers; 1967: Smashing Time (Duas Raparigas em Londres), de Desmond Davis; 1968: Diamonds for Breakfast
(Diamantes ao Pequeno - Almoço), de Christopher Morahan; 1969: The Guru, de James Ivory; The Bed
Sitting Room (O Quarto-sala), de Richard Lester; 1972: Straight on Till Morning
(Até ao Amanhecer), de Peter Collinson; 1973: Situation, de Peter Patzak; Where Do You Go from Here?;
Armchair Theatre (TV); 1974: Rachel's Man, de Moshé Mizrahi; No Strings (TV);
Comedy Playhouse (TV); Fischia il sesso, de Gian Luigi Polidoro; 1975: The
'Human' Factor, de Edward Dmytryk; 1976: Ragazzo di Borgata, de Giulio
Paradisi; 1977: Gran Bollito, de Mauro Bolognini; Pane, Burro e Marmellata, de
Giorgio Capitani; Green Eyes (TV); 1978: Mysteries (O Visitante Misterioso), de
Paul de Lussanet; 1980: Lady Killers (TV); 1982: Spaghetti House, de Giulio
Paradisi; Bekenntnisse des Hochstaplers Felix Krull (TV); 1984: Seeing Things
(TV); 1985: ABC Weekend Specials (TV); 1986: A Judgment in Stone, de Ousama
Rawi; Flying (A Campeã), de Paul Lynch; 1988: The Legendary Life of Ernest
Hemingway, de José María Sánchez; Bread (TV); 1989: Hard Days, Hard Nights, de
Horst Königstein; Resurrected, de Paul Greengrass; 1990: Sunday Pursuit
(Perseguição de Domingo), de Mai Zetterling (curta-metragem); 1991: Dieter Gütt
- ein Journalist (TV); 1992: A Csalás gyönyöre, de Lívia Gyarmathy; Papierowe
malzenstwo, de Krzysztof Lang; Hamburger Gift (TV); 1994: Gospel According to
Harry, de Lech Majewski; 1995: An Awfully Big Adventure, de Mike Newell; 1996:
The Boy from Mercury, de Martin Duffy; 1997: Under the Skin, de Carine Adler;
1998: Nächte mit Joan (TV); 1999: Swing, de Nick Mead; 2000: Out of Depth, de
Simon Marshall; Home Ground, de Jonathan Haren (curta-metragem); 2002: The
Stretford Wives (TV); Helen West (TV); 2003: Life Beyond the Box (TV); 2004:
Being Julia (As Paixões de Júlia), de István Szabó; 2005: Loneliness and the
Modern Pentathlon, de Daria Martin (curta-metragem); New Tricks (TV); 2006:
Angel Cake (TV); Agatha Christie's Marple (TV); 2007: Puffball (Filhos do
Oculto), de Nicolas Roeg; Il Nascondiglio, de Pupi Avati; 2008: Come Here
Today, de Simon Aboud (curta-metragem); Broken Lines, de Sallie Aprahamian;
Telstar, de Nick Moran; Sight Test, de Joseph Knowles (curta-metragem); 2009:
The Calling, de Jan Dunn; 2011: Seamonsters, de Julian Kerridge; Bedlam (TV);
2012: Outside Bet, de Sacha Bennett; 2013: The Wee Man, de Ray Burdis.
SHELAGH DELANEY
(1938-2011)
Shelagh
Delaney nasceu a 25 de Novembro de 1938, em Broughton, Salford, Lancashire,
Inglaterra, tendo falecido a 20 de Novembro de 2011, em Suffolk, Inglaterra,
com 72 anos, vítima de cancro. A família tinha ascendência irlandesa, o pai era
controlador de bilhetes nos autocarros. Estudou na Broughton Secondary Modern
School. Interessa-se por teatro desde muito nova. Um dia vê a peça de Terence
Rattigan, “Variations on a Theme”, na Manchester's Opera House, e acha que é
capaz de fazer melhor. Sobretudo no que diz respeito à descrição das
personagens homossexuais e femininas. Escreve em duas semanas a sua primeira
peça, “A Taste of Honey”, que é aceite por Joan Littlewood no seu Theatre
Workshop. É desde logo ligada ao movimento “Kitchen sink realism” e igualmente
aos “Angry Young Men”, designação que nunca aceita e que afirma detestar.
A
primeira representação de “A Taste of Honey”, que decorre na sua terra natal,
Salford, acontece a 27 de Maio de 1958, passando depois ao West End, onde se
prolonga por 368 representações, a partir de Janeiro de 1959. Mais tarde, em
1960, estreia-se na Broadway, com encenação de Tony Richardson e interpretação
de Joan Plowright e Angela Lansbury. É considerada a peça mais representada de
uma escritora inglesa do pós-guerra. Em
1961, escreve, conjuntamente com Tony Richardsono argumento cinematográfico de
“Uma Gota de Mel”, com o qual ganhou os prémios de Melhor Argumento dos BAFTA e
do Writers' Guild of Great Britain Award em 1962. Delaney escreveu ainda outros
argumentos para cinema: “The White Bus”, “Charlie Bubbles” (ambos em 1967) e
“Dance with a Stranger” (1985). Ciou igualmente peças para rádio: “Tell Me a
Film” (2003), “Country Life” (2004) e ainda “Whoopi Goldberg's Country Life
(2010). “Sweetly Sings the Donkey”, uma colecção de contos, é editada em 1963.
Shelagh Delaney, e sobretudo a sua peça “A Taste of Honey”, teve uma grande
influência na música do seu tempo, nomeadamente em The Smiths e Morrissey. Mas
a canção do mesmo nome foi composta por Bobby Scott e Ric Marlow, havendo
depois várias versões, entre as quais o cover instrumental de Herb Alpert and
the Tijuana Brass, ou a versão, de 1964, cantada por Tony Bennett. Um ano
antes, os Beatles lançaram o álbum “Please Please Me”, onde aparecia o tema,
produzido por George Martin e cantado por Paul McCartney.
Principais peças de teatro: “A Taste
of Honey”, “The Lion in Love” (1960), “The White Bus”, “Charlie Bubbles”,
“Dance With a Stranger”.
A
relação de Shelagh Delaney, com o cinema e a televisão foi muito intensa. Para
lá da versão de “Uma Gota de Mel”, assinada por Tony Richardson (1961), há a
assinalar, além de algumas outras adaptações para televisão, "Charlie
Bubbles" (Um Homem e a Sua História), de Albert Finney (1967), com Albert
Finney, Colin Blakely e Billie Whitelaw, “The White Bus”, de Lindsay Anderson (1967), "Dance with a
Stranger" (Dança Fatal), de Mike Newell (1985), com Miranda Richardson, Rupert Everett e Ian Holm,
ou “Three Days in August”, de Jan Jung (1992), uma co-produção
russa-norte-americana. Em Portugal, Artur Ramos, em 1994, dirigiu uma versão
televisiva de “Um Sabor a Mel”, com base numa encenação de João Lourenço, com
Irene Cruz, Cristina Carvalhal, Rogério Samora, Miguel Hurst, André Maia, Paulo
Curado e Melim Teixeira.
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