domingo, 19 de outubro de 2014

SESSÃO 51: 21 DE OUTUBRO DE 2014


O LIVRO DE CABECEIRA (1996)

O corpo sempre foi, desde tempos imemoriais, suporte de mensagens nele inscritas, de desenhos a letras, símbolos diversos de testemunhos variados. Em África ou nas Américas, uma multiplicidade de tribos e raças servia-se do corpo tatuado ou simplesmente pintado para inspirar as mais diversas emoções ou invocar os deuses. Na Europa e no Oriente passou-se o mesmo e em muitos casos ainda se passa. A recente febre de tatuagens, desde o “Amor de Mãe” a “Angola 62”, até aos mais elaborados e sofisticados desenhos “simbólicos” mostram que desenhar e escrever no corpo é prática corrente desde sempre. Mudam apenas os artefactos e as técnicas com que se executam os empreendimentos. Antigamente eram os feiticeiros, hoje são os tatuadores célebres que se reúnem em convenções internacionais em Miami ou outras paradisíacas localidades para que o negócio rende. De resto a pele de animais sempre serviu de base de escrita, e é vulgar ainda hoje, em filmes e romances de terror, haver alusões a pele humana retirada do corpo de vítimas e usada para transmitir recados ou guardar mensagens. 
“The Pillow Book” (O Livro de Cabeceira), dirigido por Peter Greenaway em 1996, e baseado na obra da cortesã e escritora medieval japonesa (século X) Nagiko Kiyohara no Motosuke Sei Shonagon, conta uma história que tem por base a escrita no corpo humano. O filme abre com imagens da pequena Nagiko (repare-se na justaposição da protagonista do filme com a própria escritora, através do uso do nome Nagiko) a servir de tela privilegiada do pai, escritor e calígrafo, a desenhar-lhe no rosto signos japoneses que para sempre a irão marcar. Essas frases dizem que “Deus criou o primeiro modelo de um ser humano em barro, pintou os olhos, os lábios e o sexo. Depois, pintou o nome de cada pessoa para que o dono jamais o esquecesse. Se Deus gostava da sua criação trazia à vida o modelo de barro pintado assinando o seu próprio nome”. Numa civilização onde o símbolo tem uma importância tão grande e as iniciações estabelecem parâmetros definitivos, Nagiko sente-se guiada na sua vida por essa relação umbilical entre a caligrafia, a poesia, a pele humana, o sexo, o amor, a vingança e a morte.


Ainda jovem, descobre que o pai para conseguir editar os seus textos cedia aos desejos sexuais do seu editor homossexual. Quando amadureceu, serviu-se da sua beleza e sedução para chegar junto do editor, que no entanto recusa publicar os seus livros. Utiliza então um estratagema, seduzindo o escritor europeu amante do editor, para chegar junto deste e acabar por ver publicadas as suas obras. São treze livros que irão circular entre a escritora e o editor, levados na pele de sucessivos mensageiros, sendo que muitas vezes a mensagem se identifica com o próprio mensageiro. Nagiko não deixa nada ao acaso, prepara cada mensageiro com minucia, depila, lava, aromatiza, escreve delicadamente cada poema. Jerome, o escritor inglês, é o primeiro a ser enviado, curiosamente com o livro seis, “o livro do amante”, escrito por Nagiko e encadernado pelo editor, o que transforma num triângulo amoroso esta primeira emissão. Jerome, o mensageiro, estabelece a ligação entre Nagiko e o editor, conduzida por uma bissexualidade que o transforma num joguete facilmente manobrável. O segundo e terceiro livro são expedidos em simultâneo, “o livro do inocente” e “o do idiota”. “O livro do impotente” é o quarto, lançado em correria. O quinto mensageiro, gordo, chama-se “o livro do exibicionista”. No sétimo, “o livro do sedutor”, a chuva lavou os símbolos e dele quase só resta o corpo. O oitavo é “o livro da juventude”. O nono, povoado por enigmas, é “o livro dos segredos”. O décimo, que se apresenta como “o livro do silêncio”, traz os barulhos da grande cidade O décimo primeiro mensageiro aparece morto junto da porta da editora, atropelado. É “o livro do traído”. O décimo segundo apenas se dá por ele porque buzina ao passar no seu carro, é “o livro dos falsos inícios”. 


Finalmente o décimo terceiro, “o livro da morte”, encerra o percurso da vingança e justifica a morte do editor com as frases que estão inscritas no corpo do mensageiro: “Na época dos antigos samurais, quando prendiam os criminosos, tatuavam os seus crimes nos seus corpos. O editor é um criminoso, merece carregar a vergonha dos seus actos para sempre. Mas os seus crimes não estão escritos no seu corpo. É na sua alma que eles estão escritos. Deveriam estar à mostra para todos verem como é sujo. A única verdadeira posse de um ser humano é o amor que ele possui. Tudo se acaba ou então se consome, menos o amor. A única coisa que levamos da vida é o que nós sentimos. Os homens desonrados não merecem o dom da vida. O editor não tem honra. Não merece viver”. Peter Greenaway, autor de obras como "The Draughtsman's Contract", "The Cook, the Thief, His Wife, and Her Lover", "Prospero's Books", “The Baby of Mâcon” ou “Nightwatching”, entre muitas outras, é um cineasta experimentalista, que não acredita numa narrativa tradicional, numa forma linear de “contar” uma história. Os seus filmes devem muito à pintura, à música, às artes performativas. O seu realizador preferido é Alain Resnais, o seu filme referência é “O Último Ano em Marienbad”. O seu cinema mistura as técnicas tradicionais do cinema, mas também o vídeo, jogando com a cor e o preto e branco, com diferentes enquadramentos no mesmo plano (em “O Livro de Cabeceira” surgem várias imagens de menores dimensões no interior dos planos, multiplicando as leituras). Utiliza a imagem, a escrita, a poesia, a voz off, o recitativo e a voz das personagens, criando um conjunto de referências que o espectador absorve e produzindo uma sensação caótica que obriga a uma compreensão activa. Neste particular, “O Livro de Cabeceira” conjuga imagens de rara beleza plástica com uma sonoridade encantatória, que a fotografia de Sacha Vierny, o director de fotografia de Resnais, alimenta magnificamente, e os actores sublinham com a sua presença e talento. Filme de uma grande sensualidade e sedução, mas sempre elegante e púdico, funciona como um marco decisivo no interior da filmografia do autor e do cinema vanguardista contemporâneo.



O LIVRO DE CABECEIRA
Título original: The Pillow Book
Realização: Peter Greenaway (Inglaterra, Holanda, França, Luxemburgo, 1996); Argumento: Peter Greenaway, Sei Shonagon, segundo obra desta última; Produção: Terry Glinwood, Kees Kasander, Jessinta Liu, Jean-Louis Piel, Tom Reeve, Denis Wigman; Fotografia (cor):  Sacha Vierny; Montagem: Peter Greenaway, Chris Wyatt; Casting: Abi Cohen, Hitomi Ishihara, Carrie O'Brien, Aimi O, Liora Reich; Design de produção: Kôichi Hamamura, Willemijn Loivers, Hiroto Oonogi, Andrée Putman, Noriyuki Tanaka, Wilbert Van Dorp; Guarda-roupa: Martin Margiela, Dien van Straalen, Koji Tatsuno; Maquilhagem: Seiji Arai, Cathy Folmer, Shoko Ishigaki, Sara Meerman, Vivian Nowak, Noriko Sato, Kyôko Toyokawa; Direcção de Produção: Katsumi Furuhashi, Misako Furukawa, Yumiko Miwa, Fiona Nottingham;  Assistentes de realização: Paul Cheung, Koji Kobayashi, Adrian Kwan, Kenji Nakanishi, Aimi O, Vincent Rivier; Departamento de arte: Lau Wai Chung, Lijntje Helweg, Wong Mai Ming, Law Tak Nga, Lau Kwok On, Danielle Schilling, Wong Kwong Shing, Mari Tobita, Dione van der Hoeven, Floris Vos, Emi Wada; Som: Kazunori Fujimaru, Nigel Heath, Mathew Knights, Garth Marshall, Kan Shirai, Julian Slater, Volker Zeigermann; Efeitos visuais: Reinier van Brummelen; Companhias de produção: Kasander & Wigman Productions, Woodline Films Ltd., Alpha Film Corporation, Channel Four Films, Canal+, Delux Productions, Euroimages Fund of the Council of Europe, Nederlands Fonds voor de Film; Intérpretes: Vivian Wu (Nagiko), Yoshi Oida (o editor), Ken Ogata (o pai), Hideko Yoshida (a tia), Ewan McGregor (Jerome), Judy Ongg ( mãe), Ken Mitsuishi (o marido), Yutaka Honda (Hoki), Barbara Lott (a mãe de Jerome), Miwako Kawai (a jovem Nagiko), Lynne Langdon, Chizuru Ohnishi, Shiho Takamatsu, Aki Ishimaru, Hisashi Hidaka, Dehong Chen, Ham-Chau Luong, Akihiko Nishida, Kentaro Matsuo, Nguyen Duc Nhan, Augusto Aristotle, Roger To Thanh Hien, Chris Bearne, Ronald Guttman, Wichert Dromkert, Martin Tukker, Wu Wei, Tom Kane, Kheim Lam, Daishi Hori, Kinya Tsuruyama, Eiichi Tanaka, Rick Waney, Masaru Matsuda, Wataru Murofushi, Ryuke Azuma, etc. Duração:126 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 16 anos; Data de estreia em Portugal: 25 de Outubro de 1996. 

PETER GREENAWAY (1942 - )
Peter Greenaway nasceu a 5 de Abril de 1942, em Newport, País de Gales. A família vivia no País de Gales mas, quando Peter tinha três anos de idade, mudou-se para Essex. Ainda criança, Peter Greenaway começou a interessar-se muito por artes plásticas e desejava ser pintor. Esta sua inclinação manteve-se ao longo da vida, desenvolvendo uma sensibilidade pictórica muito interessante, inclusive no campo do cinema, onde se tornou mais conhecido. Em 1962, iniciou estudos no Walthamstow College of Art, onde teve como colega e amigo o músico Ian Dury, (com quem mais tarde colaboraria em “The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover”). Em Walthamstow estudou pintura, pois queria ser pintor muralista, e realiza seu primeiro filme, “Death of Sentiment”, um ensaio sobre jardins de igrejas, filmado em quatro dos maiores cemitérios de Londres. Em 1965 vamos encontrá-lo no Central Office of Information, onde passou os quinze anos seguintes, trabalhando, inicialmente como montador e depois como realizador, sobretudo e filmes experimentais, e sempre muito ligados à pintura. No campo do cinema, os seus interesses foram para autores como Bergman, ou os franceses da Nouvelle Vague, Godard e Resnais. O seu filme favorito é “O Último Ano em Marienbad” (1961) e a actriz Delphine Seyrig. Greenaway interessou-se sempre por ópera, tendo escrito dez libretos, para uma série, “The Death of a Composer: Rosa, a Horse Drama,  The Tulse Luper Suitcases, The Moab Story”, tendo como referência dez compositores, de Anton Webern a John Lennon. A sua primeira longa-metragem data de 1980, “The Falls”,  sendo que as suas obras de maior reconhecimento internacional datam das décadas de 80 e 90. O interesse por ópera e música levou Greenaway a produzir, em 2005, um espectáculo multimedia, de colaboração com o maestro e compositor David Lang e o calígrafo Brody Neuenschwander, intitulado "Writing on Water". O espectáculo reuniu, ao vivo, a orquestra London Sinfonietta, o realizador, montando imagens numa mesa de vídeo, o compositor na regência da orquestra e o calígrafo, todos trabalhando simultaneamente, com o produto audiovisual sendo lançado num enorme ecrã que era presenciado por vastas plateias. Em 1999, Greenaway divorciou-se, vendeu a casa da família no País de Gales e passou a viver na Holanda. Em 2007, passou a Comandante da »Ordem do Império Britânico, pela sua contribuição à arte do cinema.

Filmografia
Como realizador (curtas-metragens): 1962: Death of Sentiment; 1966: Tree; Train; 1967: Revolution; 5 Postcards From Capital Cities; 1969: Intervals; 1971: Erosion; 1973: H Is for House; 1975: Windows; Water Wrackets; Water; 1976: Vertical Features Remake; Goole by Numbers; 1977: Dear Phone; 1978: A Walk Through H: The Reincarnation of an Ornithologist; Eddie Kid; Cut Above the Rest; 1-100; Vertical Features Remake;1979: Zandra Rhodes; Women Artists; Leeds Castle; 1980: Lacock Village; Country Diary; Act of God; 1981: Terence Conran; 1983: The Coastline; 1984: Making a Splash; 1985: Inside Rooms: 26 Bathrooms, London & Oxfordshire; 1988: Fear of Drowning; 1989: Hubert Bals Handshake; Death in the Seine; 1991: M Is for Man, Music, Mozart; A Walk Through Prospero's Library; 1992: Rosa; 1997: The Bridge; 2001: The Man in the Bath; 2003: Cinema16: British Short Films; 2005: Writing on Water; 2009: The Marriage;
(longas-metragens): 1980: The Falls; 1982: The Draughtsman's Contract (O Contrato); 1983: Four American Composers; 1985: A Zed & Two Noughts (Z00 - Um Z e dois Zeros); 1987: The Belly of an Architect (O Ventre de um Arquitecto); 1988: Drowning by Numbers (Maridos à Água); 1989: The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover (O Cozinheiro, o Ladrão, a sua Mulher e o Amante Dela); 1990: A TV Dante (TV Mini-série) (4 episódios); 1991: Prospero's Books (Os Livros de Próspero); Darwin; A Walk Through Prospero's Library (documentário); 1993: The Baby of Mâcon (O Bebé de Mâcon); 1995: Stairs 1 Geneva (documentário); 1996: Lumière et Compagnie - filme colectivo (documentário); 1996: The Pillow Book (O Livro de Cabeceira); 1999: 8½ Women (8 Mulheres e ½); The Death of a Composer: Rosa, a Horse Drama; 2003: The Tulse Luper Suitcases, The Moab Story; The Tulse Luper Suitcases, Antwerp; The Tulse Luper Suitcases, Sark to the Finish; 2004: The Tulse Luper Suitcases, Vaux to the Sea; Visions of Europe (fragmento "European Showerbath") - filme colectivo; 2005: A Life in Suitcases; 2007: Nightwatching (A Ronda da Noite); Peopling the Palaces at Venaria Reale; 2008: Rembrandt's J'accuse (documentário); Cinema Is Dead, Long Live the Screen (documentário); 2012: Goltzius and the Pelican Company; 2013: 3x3D (episódio "Just in Time"); 2014: Eisenstein in Guanajuato (pós-produção); 2015: Walking to Paris (pré-produção); 2016: The Eisenstein Handshakes (anunciado).

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